— Você não entende o que fiz à minha mulher e ao meu filho que vai nascer? Eu jamais devia ter casado com Tonks, eu a transformei em uma pária! — Lupin chutou para o lado a cadeira que derrubara.
“Você até hoje só me viu na Ordem, ou sob a proteção de Dumbledore, em Hogwarts! Você não sabe como a maioria do mundo bruxo encara as criaturas como eu! Quando descobrem a minha desgraça, nem conseguem mais falar comigo! Você não percebe o que eu fiz? Até a família dela se desgostou com o nosso casamento, que pais querem ver a única filha casada com um lobisomem? E o filho... o filho...”
Lupin chegou a arrancar tufos dos próprios cabelos; parecia muito descontrolado.
— A minha espécie normalmente não procria! Ele será como eu, estou convencido. Como poderei me perdoar, quando conscientemente corri o risco de transmitir a minha deficiência a uma criança inocente? E se, por milagre, ela não for como eu, então estará melhor, mil vezes melhor sem um pai do qual sempre se envergonhará!
— Remo! — sussurrou Hermione, os olhos marejados de lágrimas. — Não diga isso, como uma criança poderia ter vergonha de você?
— Ah, não sei, Hermione — disse Harry. — Eu teria muita vergonha dele.
Ele não sabia de onde vinha a sua raiva, mas o sentimento o fizera se levantar também. A expressão de Lupin era a de quem tinha sido esbofeteado por Harry.
— Se o novo regime acha que os que nasceram trouxas são criminosos, que fará com um mestiço de lobisomem cujo pai pertence à Ordem? Meu pai morreu tentando proteger a mim e minha mãe, e você acha que ele lhe diria para abandonar seu filho e nos acompanhar em uma aventura?
— Como... como se atreve? — disse Lupin. — Não se trata de um desejo de... correr riscos ou obter glória pessoal... como se atreve a insinuar uma...
— Acho que você está sendo audacioso — disse Harry. — Querendo ocupar o lugar de Sirius...
— Harry, não! — suplicou Hermione, mas ele continuou a encarar o rosto lívido de Lupin.
— Eu nunca teria acreditado — continuou Harry. — O homem que me ensinou a combater dementadores... um covarde.
Lupin sacou a varinha tão rápido que Harry mal teve tempo de apanhar a própria; seguiu-se um forte estampido e ele se sentiu arremessado para trás como se tivesse levado um murro; ao bater contra a parede da cozinha e escorregar para o chão, viu a ponta da capa de Lupin desaparecer pela porta.
— Remo, Remo, volte! — gritou Hermione, mas Lupin não respondeu. Instantes depois ouviram a porta da frente bater. — Harry! -gritou, chorosa. — Como pôde fazer isso?
— Foi fácil — respondeu Harry.
Ele se levantou; sentiu um galo crescendo no lugar em que sua cabeça batera na parede. Sua raiva era tanta que o fazia tremer.
— Não olhe para mim desse jeito! — disse rispidamente a Hermione.
— Não se vire contra ela! — rosnou Rony.
— Não... não... não devemos brigar! — disse Hermione atirando-se entre os dois.
— Você não devia ter dito aquilo a Lupin — disse Rony a Harry.
— Ele estava pedindo — respondeu Harry. Imagens fragmentadas sobrepunham-se celeremente em sua mente: Sirius atravessando o véu; Dumbledore suspenso, desconjuntado, no ar; um lampejo de luz verde e a voz de sua mãe pedindo misericórdia...
— Os pais — disse Harry — não devem abandonar os filhos, a não ser... a não ser que não possam evitar.
— Harry... — disse Hermione, esticando a mão para consolá-lo, mas ele repeliu-a e se afastou, fixando as chamas que a garota tinha conjurado. Uma vez falara com Lupin por aquela lareira, buscando consolo por causa do pai, e o professor o ajudara. Agora o rosto torturado e pálido de Lupin parecia flutuar diante de seus olhos. Ele sentiu uma onda nauseante de remorso. Nem Rony nem Hermione falaram, mas ele tinha certeza de que estavam se entreolhando às suas costas, comunicando-se em silêncio.
Harry se virou e surpreendeu-os voltando rapidamente as costas um para o outro.
— Sei que não devia tê-lo chamado de covarde.
— Não, não devia — concordou Rony, imediatamente.
— Mas é como ele está agindo.
— Mesmo assim... — disse Hermione.
— Eu sei. Mas se isto o fizer voltar para Tonks, terá valido a pena, não?
Ele não pôde evitar o tom de súplica em sua voz. Hermione pareceu receptiva, Rony, inseguro. Harry olhou para os próprios pés pensando no pai. Tiago teria apoiado o que ele dissera a Lupin ou teria se zangado com o filho pelo modo com que tratara seu velho amigo?
A cozinha silenciosa pareceu vibrar com o impacto da cena recente e a reprovação muda de Rony e Hermione. O Profeta Diário que Lupin trouxera continuava sobre a mesa, a foto de Harry na primeira página virada para o teto. Ele se aproximou e se sentou, abriu o jornal a esmo e fingiu ler. Não conseguia entender as palavras, sua mente ainda arrebatada pelo confronto com Lupin. Sabia que Rony e Hermione tinham retomado sua comunicação silenciosa por trás do Profeta. Ele virou a página com violência, e o nome de Dumbledore saltou aos seus olhos. Harry levou alguns instantes para entender o significado da foto em que havia uma família. Sob a foto a legenda: A família Dumbledore: da esquerda para a direita, Alvo, Percival, segurando Ariana recém-nascida, Kendra e Aberforth.
Atento, Harry parou para examinar a foto. O pai de Dumbledore, Percival, era um homem bonito, com olhos que pareciam cintilar mesmo na velha foto desbotada. O bebê, Ariana, era pouco maior que uma forma de pão e igualmente desprovido de traços marcantes. A mãe, Kendra, tinha cabelos muito negros presos em um coque. Seu rosto parecia esculpido. Apesar do vestido de seda de gola alta que usava, Harry lembrou-se de índios americanos ao estudar seus olhos escuros, malares altos e nariz reto. Alvo e Aberforth usavam paletós iguais com gola de renda e cortes idênticos nos cabelos até os ombros. Alvo parecia vários anos mais velho, mas sob outros aspectos, os dois meninos eram muito semelhantes, porque a foto fora tirada antes de Alvo ter o nariz fraturado ou começar a usar óculos.
A família parecia bem feliz e normal e sorria serenamente. O bebê acenava, sem direção, com o braço fora da manta. Harry olhou para o alto da foto e leu a manchete:
TRECHO EXCLUSIVO DA BIOGRAFIA DE ALVO DUMBLEDORE A SER LANÇADA EM BREVE por Rita Skeeter
Pensando que não poderia se sentir pior do que já se sentia, Harry começou a ler:
Orgulhosa e arrogante, Kendra Dumbledore não poderia suportar permanecer em Mould-on-the-Wold depois da comentada detenção do marido Percival e sua prisão em Azkaban. Ela decidiu, portanto, cortar esses laços e se mudar para Godric’s Hollow, a aldeia que anos mais tarde se tornaria famosa como cenário do ataque de Você-Sabe-Quem a Harry Potter e a inexplicável sobrevivência do menino.
Godric’s Hollow, tal como Mould-on-the-Wold, era o refúgio de muitas famílias bruxas, mas, não as conhecendo, Kendra estaria a salvo da curiosidade que o crime de Percival despertara em sua antiga aldeia. Repelindo as tentativas de aproximação dos vizinhos bruxos, em pouco tempo ela garantiu que sua família fosse deixada em paz.
“Kendra bateu a porta na minha cara quando passei para lhe dar as boas-vindas levando um tabuleiro de bolos de caldeirão”, conta Batilda Bagshot. “No primeiro ano em que moraram lá, só vi os dois meninos. Não saberia que havia uma filha se não estivesse colhendo plangentinas ao luar no inverno depois da mudança e visse Kendra saindo com Ariana para o jardim dos fundos. Deu uma volta com a criança segurando-a com firmeza, depois tornou a entrar. Eu nem soube o que pensar daquilo.”
Aparentemente, Kendra achou que mudar para Godric’s Hollow seria a oportunidade perfeita de esconder Ariana para sempre, coisa que provavelmente vinha planejando havia anos. O momento era oportuno. Ariana ainda não completara sete anos quando deixou de ser vista, e sete anos é a idade em que, se existir, a magia se revelará, segundo a maioria dos estudiosos. Nenhuma das pessoas ainda vivas se lembra de Ariana demonstrar o menor pendor para a magia. Parece evidente, portanto, que Kendra tenha decidido esconder a existência da filha para não sofrer a vergonha de admitir que dera à luz uma bruxa abortada. Afastar-se dos amigos e vizinhos que conheciam Ariana, naturalmente, tornaria a sua prisão em casa tanto mais fácil. O pequeno número de pessoas que a partir daí conheceram sua existência guardaria o segredo, inclusive seus dois irmãos, que contornavam as perguntas embaraçosas com a resposta que a mãe lhes ensinara: “Minha irmã é muito doentinha para freqüentar a escola.”