-Dino, Dino. Senhor Mattusi é o meu pai. Sim, viajo bastante. -Sorriu para Catherine e baixou a voz. -Mas viajar às vezes pode trazer uns prazeres extras. Entende o que eu quero dizer?
Catherine devolveu-lhe o sorriso. -Não.
Às 12.15 dessa tarde, Catherine saiu para a consulta que tinha com o doutor Hamilton. Para sua surpresa, deu por si a desejá-la com ansiedade. Lembrou-se da perturbação que sentira da última vez em que fora vê-lo. Desta vez entrou no consultório com uma plena sensação de antecipação. A recepcionista tinha ido almoçar e a porta do gabinete estava aberta. Alan Hamilton estava ã espera dela. -Entre-ele cumprimentou-a.
Catherine entrou no gabinete e ele apontou para uma cadeira. -Então? Teve uma boa semana?
-Uma boa semana? Nem por isso. -Não conseguiu afastar do pensamento a morte de Kirk Reynolds. - Foi assim-assim. Eu... arranjo sempre que fazer.
-Isso ajuda muito. Há quanto tempo trabalha para o Constantin Demiris?
-Há quatro meses.
- Gosta do seu trabalho?
-Faz que eu não pense... nas coisas. Devo muito ao senhor Demiris. Não lhe posso dizer o quanto ele tem feito por mim. -Catherine sorrriu pesarosamente. -Mas acho que direi, não?
Alan Hamilton sacudiu a cabeça. -Dir-me-á apenas o que me quiser contar. Houve um silêncio. Èla por fim quebrou-o.
-0 meu marido trabalhava para o senhor Demiris. Era o piloto dele. Eu.., tive um acidente de barco e perdi a memória. Quando a recuperei, o senhor Demiris ofereceu-me este emprego.
«Estou a omitir a dor e o terror. Estarei com vergonha de lhe dizer que o meu marido me tentou matar? Será porque receio que ele vá pensar que sou menos digna? Não é fácil para nenhum de nós dois falar dos nossos passados.» Catherine olhou para ele, em silêncio. -Disse que perdeu a memória.
- É verdade.
-Teve um acidente de barco.
-Sim.-Os lábios de Catherine estavam tensos, como se estivesse determinada a dizer-lhe o mínimo possível. Ela estava dividida por um conflito terrível. Queria contar-lhe tudo e ter a ajuda dele. Não lhe queria contar nada, queria que ele a deixasse em paz.
Alan Hamilton analisava-a pensativamente. -É divorciada?
- Sou. Por um pelotão de fuzilamento. - Ele... o meu marido morreu.
-Miss Alexander... -Ele hesitou. -Importa-se que a trate por Catherine?
-Não.
- Eu chamo-me Alan. Catherine, do que é que tem medo? Ela endureceu.
- 0 que é que o leva a pensar que tenho medo? - Não tem?
- Não. - Desta vez o silêncio foi mais longo.
Ela estava receosa de exprimir-se por palavras, receosa de pôr a realidade a descoberto.
-As pessoas que me rodeiam... parece que morrem. Se ficou surpreso, não mostrou.
- E você acredita que é a causa das suas mortes? -Sim. Não. Não sei. Estou... confusa.
- Nós culpamo-nos muitas vezes por coisas que acontecem aos outros. Se um casal se divorcia, os filhos pensam que a culpa é deles. Se alguém roga uma praga a uma pessoa e essa pessoa morre, a outrapensa quefoi a causa do sucedido. Esse tipo de crençanão é de modo algum invulgar. Você...
-E mais do que isso.
-É?-Ele observou-a, pronto a ouvir. As palavras jorravam.
- 0 meu marido foi morto, bem como a... a amante dele. Os dois advogados que os defenderam morreram. E agora... -Avoz dela mudou de tom. - 0 Kirk.
-E você pensa que é responsável por todas essas mortes. É um fardo tremendo para carregar, não?
-Parece que eu... sou uma espécie de amuleto do azar. Tenho receio de ter uma relação com outro homem. Não acho que seria capaz de resistir se alguma coisa...
-Catherine, sabe,por que vida você é responsável? Pela sua. Pela de mais ninguém. E-lhe impossível controlar a vida e a morte de outra pessoa. Você está inocente. Não teve nada a ver com nenhuma das outras mortes. Precisa de entender isso.
«Você está inocente. Vocë não teve nada a ver com nenhuma dessas mortes.» E Catherine ficou a pensar nestas palavras. Queria desesperadamente acreditar nelas. «Aquelas pessoas tinham morrido por causa dos seus actos, não por causa dos dela. E, quanto a Kirk, foi um acidente infeliz. Não foi? Alan Hamilton ficou a observá-la em silêncio. Catherine ergueu 0 olhar e pensou: ~<Ele é um homem decente>~. Outro pensamento surgiu-lhe espontâneo na mente. «Quem me dera tê-lo conhecido há mais tempo.~~ Com a consciência pesada, Catherine olhou de relance para a fotografia emoldurada da mulher e do filho de Alan na mesa do lado.
- Obrigada - disse Catherine. - Vou.„ vou tentar acreditar nisso. Terei de habituar-me à ideia.
Alan Hamilton sorriu.
- Habituar-nos~mos juntos. Vai voltar? - 0 quê?
-Esta sessão foi experimental, lembra-se? Você ficou de decidir se queria continuar.
Catherine não hesitou. -Voltarei, sim, Alan, Depois de ela partir, Alan Hamilton ficou a pensar nela. Ele tratara de muitas doentes atraentes durante os anos de prática, e algumas delas deram sinal de interesse sexual por ele, Mas ele era um psiquiatra demasiado bom para consentir atentação. Uma relação pessoal com uma doente eraum dos primeiros tabus da sua profissão. Teria sido uma traição. 0 doutor Alan Hamilton era originário de um meio médico. 0 pai eraum cirurgião que desposara a enfermeira, e o avô deAlan fora um cardiologistafamoso. Desde menino, Alan sabia que queria sermédico. Um cirurgião como o pai. Frequentara a faculdade de medicina da King~s College e, após a licenciatura, especializara-se em cirurgia. Tinha uma queda natural para isso, uma aptidão que não podia ser ensinada. E então, no dia 1 de Setembro de 1939, o exército do Terceiro Reich atravessara a fronteira da Polónia, e dois dias depois a Grã-Bretanha e a França declararam guerra. A Segunda Guerra Mundial havia começado. Alan Hamilton assentara praça como cirurgião. A 22 de Junho de 1940, depois de as forças do Eixo terem conquistado a Polónia, a Checoslováquia, a Finlândia, a Noruega e os Países Baixos, a França rendeu-se, e o impacte da guerra caiu sobre as Ilhas Britânicas. A princípio, eram cem os aviões que diariamente lançavam bombas sobre cidades britânicas. Em breve eram duzentos aviões, depois mil. Acarnificina estava para além da imaginação.Osferidos e osmoribundos estavam por toda a parte. As cidades estavam em chamas. Mas Hitler avaliara muito mal os ingleses. Os ataques apenas serviram para fortalecer a sua determinação. Estavam prontos a morrer pela liberdade. Não havia folga, dia ou noite, e Alan Hamilton dava por si sem dormir for períodos que por vezes se estendiam até sessentahoras. Quando ohospital deurgências onde trabalhavafoi bombardeado, ele levou os doentes para um armazém. Salvou inúmeras vidas, trabalhando sob as condições mais arriscadas possíveis. Em Outubro, quando o bombardeamento estava no seuponto mais alto, as sirenes do antiaéreo soaram e as pessoas dirigiam-se para os abrigos antiaéreos subterrâneos. Alan estava a meio de uma operação e recusou-se aabandonar o doente. As bombas aproximavam-se. Um médico que trabalhava com Alan disse:
-Vamos pôr-nos a mexer daqui para fora.
-SÓ um minuto.-Ele tinha o peito do doente aberto e estava a remover pedaços de estilhaços ensanguentados.
-Alan!
Mas ele não podia ir-se embora. Estava concentrado no que fazia, alheio ao som das bombas que caíam à sua volta. Nunca ouviu o som da bomba que caiu no edifício. Esteve em coma durante seis dias, e quando acordou soube que, entre outros ferimentos, os ossos da sua mão direita tinham sido esmagados. Foram consertados e pareciam normais, mas não voltaria a operar. Levou quase um ano a ultrapassar o trauma de ver o seu futuro destruído. Esteve sob os cuidados de um psiquiatra, um médico competente que disse:
-Vão sendo horas de deixar de sentir pena de si próprio e iniciar uma vida nova.
-Afazer o quê?-Alan perguntara amargamente.
- 0 que tem andado a fazer.., só que de uma maneira diferente. -Não estou a perceber.
-Você é um médico, Alan. Cura os corpos das pessoas. -Bem, isso já não pode voltar a fazer. Mas é igualmente importante curar as mentes das pessoas. Você daria um óptimo psiquiatra. É inteligente e tem compaixão, Pense nisso.