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Longamente caminhamos.

Aqui havia uma casa.

A montanha era maior.

Tantos mortos amontoados,

o tempo roendo os mortos.

E nas casas em ruína

desprezo frio, umidade.

Porém nada dizia.

A rua que atravessava

a cavalo, de galope.

Seu relógio. Sua roupa.

Seus papéis de circunstância.

Suas histórias de amor.

Há um abrir de baús

e de lembranças violentas.

Porém nada dizia.

No deserto de Itabira

as coisas voltam a existir,

irrespiráveis e súbitas.

O mercado de desejos

expõe seus tristes tesouros;

meu anseio de fugir;

mulheres nuas; remorso.

Porém nada dizia.

Pisando livros e cartas,

viajamos na família.

Casamentos; hipotecas;

os primos tuberculosos;

a tia louca; minha avó

traída com as escravas,

rangendo sedas na alcova.

Porém nada dizia.

Que cruel, obscuro instinto

movia sua mão pálida

sutilmente nos empurrando

pelo tempo e pelos lugares

defendidos?

Olhei-o nos olhos brancos.

Gritei-lhe: Fala! Minha voz

vibrou no ar um momento,

bateu nas pedras. A sombra

prosseguia devagar

aquela viagem patética

através do reino perdido.

Porém nada dizia.

Vi mágoa, incompreensão

e mais de uma velha revolta

a dividir-nos no escuro.

A mão que eu não quis beijar,

o prato que me negaram,

recusa em pedir perdão.

Orgulho. Terror noturno.

Porém nada dizia.

Fala fala fala fala.

Puxava pelo casaco

que se desfazia em barro.

Pelas mãos, pelas botinas

prendia a sombra severa

e a sombra se desprendia

sem fuga nem reação.

Porém ficava calada.

E eram distintos silêncios

que se entranhavam no seu.

Era meu avô já surdo

querendo escutar as aves

pintadas no céu da igreja;

a minha falta de amigos;

a sua falta de beijos;

eram nossas difíceis vidas

e uma grande separação

na pequena área do quarto.

A pequena área da vida

me aperta contra o seu vulto,

e nesse abraço diáfano

é como se eu me queimasse

todo, de pungente amor.

Só hoje nos conhecermos!

Óculos, memórias, retratos

fluem no rio do sangue.

As águas já não permitem

distinguir seu rosto longe,

para lá de setenta anos …

Senti que me perdoava

porém nada dizia.

As águas cobrem o bigode,

a família, Itabira, tudo.

JOURNEY THROUGH THE FAMILY

In the desert of Itabira

the shadow of my father

took me by the hand.

So much lost time.

But he didn’t say anything.

It wasn’t day or night.

A sigh? A bird in flight?

But he didn’t say anything.

We walked for a long time.

Here there was a house.

The mountain was taller back then.

All the people who’ve died,

time gnawing the dead.

Cold damp and disdain

in the ruined houses.

But he didn’t say anything.

The street he used to ride down

on horseback, at a gallop.

His watch. His clothes.

His miscellaneous papers.

His love affairs.

Violent memories

spilling out of old trunks.

But he didn’t say anything.

In the desert of Itabira

dead things resurrect,

unexpected and unbreathable.

The market of desires

displays its sad treasures,

my yearning to get away,

naked women, regret.

But he didn’t say anything.

Trampling on books and letters,

we journey through the family.

Weddings, mortgages,

the cousins with TB,

the crazy aunt, my grandmother

gnawing on silks in her room

when cheated on with the slave girls.

But he didn’t say anything.

What cruel, obscure instinct

moved his pale hand

quietly pushing us

through time and forbidden

places?

I looked into his white eyes.

“Speak!” I shouted. My voice

shook for a moment in the air,

then fell onto the stones.

The shadow slowly continued

that rueful journey

through the lost kingdom.

But he didn’t say anything.

I saw sorrow, misunderstanding,

and more than one old resentment

dividing us in the darkness.

The hand I wouldn’t kiss,

the food I wasn’t given,

refusal to ask forgiveness.

Pride. Terror in the night.

But he didn’t say anything.

Speak speak speak speak.

I pulled him by his coat,

which crumbled into powder.

I grabbed that stern shadow

by the hands, by his boots,

and the shadow slid free

without fleeing or reacting.

But he wouldn’t speak.

And there were various silences

couched in his silence.

There was my deaf grandfather

trying to hear the birds

painted on the church’s ceiling,

my lack of friends,

his lack of kisses,

our difficult lives,

and a huge separation

in the small area of the room.

The small area of life

presses me against his figure,

and in that ghostly embrace

it’s as if all of me burned

with poignant love.

Today, at last, we meet!

Eyeglasses, memories, photos

flow in the river of blood.

The waters no longer permit me

to make out his face in the distance,

on the other side of seventy …

I felt that he forgave me,

but he didn’t say anything.

The waters cover his mustache,

the family, Itabira, everything.

A ROSA DO POVO / ROSE OF THE PEOPLE (1945)

A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjoo?

Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.