irrigava jardins particulares
de atletas retirados, freiras surdas, funcionários demitidos.
Nisso vieram os pássaros,
rubros, sufocados, sem canto,
e pousaram a esmo.
Todos se transformaram em pedra.
Já não sinto piedade.
Antes de mim outros poetas,
depois de mim outros e outros
estão cantando a morte e a prisão.
Moças fatigadas se entregam, soldados se matam
no centro da cidade vencida.
Resisto e penso
numa terra enfim despojada de plantas inúteis,
num país extraordinário, nu e terno,
qualquer coisa de melodioso,
não obstante mudo,
além dos desertos onde passam tropas, dos morros
onde alguém colocou bandeiras com enigmas,
e resolvo embriagar-me.
Já não dirão que estou resignado
e perdi os melhores dias.
Dentro de mim, bem no fundo,
há reservas colossais de tempo,
futuro, pós-futuro, pretérito,
há domingos, regatas, procissões,
há mitos proletários, condutos subterrâneos,
janelas em febre, massas de água salgada, meditação e sarcasmo.
Ninguém me fará calar, gritarei sempre
que se abafe um prazer, apontarei os desanimados,
negociarei em voz baixa com os conspiradores,
transmitirei recados que não se ousa dar nem receber,
serei, no circo, o palhaço,
serei médico, faca de pão, remédio, toalha,
serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia,
serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais:
tudo depende da hora
e de certa inclinação feérica,
viva em mim qual um inseto.
Idade madura em olhos, receitas e pés, ela me invade
com sua maré de ciências afinal superadas.
Posso desprezar ou querer os institutos, as lendas,
descobri na pele certos sinais que aos vinte anos não via.
Eles dizem o caminho,
embora também se acovardem
em face a tanta claridade roubada ao tempo.
Mas eu sigo, cada vez menos solitário,
em ruas extremamente dispersas,
transito no canto do homem ou da máquina que roda,
aborreço-me de tanta riqueza, jogo-a toda por um número de casa,
e ganho.
MIDDLE AGE
Middle age unlearns
the lessons of childhood.
I no longer want words,
or need them.
I have all the elements
within my grasp.
All fruits,
all approvals.
Not one faint desire.
I don’t even miss
what would complete me and is nearly always melancholy.
I’m at liberty in the world at large.
A thinking horse
made of angel matter
races through my being.
I’m dazed by the night, I cross cold lakes,
I devour adventure and flesh,
I drink everything,
destroy everything,
create all over, forgetting myself:
now I sleep, and start again yesterday.
They came to me running and calling.
The woods were on fire.
I could do nothing to help,
nor did I want to.
Whatever water I had
was for watering private gardens
of retired athletes, deaf nuns, and ousted civil servants.
Birds started arriving,
bright red, gasping, songless.
They perched here and there
before turning into stone.
I’ve stopped feeling sorry.
Poets before me
and still more poets after me
sing of death and prison.
Girls struggle and give in while soldiers commit suicide
in the heart of the conquered city.
I hold out, imagining
a land finally stripped of useless plants,
an extraordinary country, naked and tender
and somehow melodious,
albeit soundless,
beyond the deserts where troops march, past the hills
where someone raised flags emblazoned with riddles,
and I decide to get drunk.
No one will ever again say I’m resigned,
with my best days behind me.
Deep within me lie
huge reservoirs of time,
future, postfuture, and past,
Sundays, regattas, processions,
proletarian myths, underground channels,
feverish windows, deposits of saltwater, reflection, sarcasm.
No one will silence me, I’ll shout whenever
joy is stifled, I’ll defend the disheartened,
I’ll confer with conspirators in a whisper,
I’ll deliver messages no one dares send or receive,
I’ll be the clown in the circus,
I’ll be a doctor, a bread knife, medicine, a towel,
I’ll be a streetcar, a boat, a shoe store, church, dungeon,
I’ll be the most ordinary human things, and the most exceptionaclass="underline"
it all depends on the moment
and on a certain bent for the fantastical,
quivering in me like an insect.
In my eyes, prescriptions, and feet, middle age invades me
with its torrent of already outdated sciences.
I can spurn or embrace this institute, that legend.
I’ve discovered moles on my skin I never noticed at age twenty.
They’re signs showing the way,
although they also shrink
before so much clarity stolen from time.
But I keep going, less and less solitary,
on vastly diverging streets.
I travel in the song of man, in the whirl of machines,
get bored with so much wealth, bet it all on a house number,
and win.
VERSOS À BOCA DA NOITE
Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva …
Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.
Escreverei sonetos de madureza?
Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? sempre mentiroso?
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?
Há muito suspeitei o velho em mim.
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la.
Mas se eu pudesse recomeçar o dia!
Usar de novo minha adoração,
meu grito, minha fome … Vejo tudo
impossível e nítido, no espaço.
Lá onde não chegou minha ironia,
entre ídolos de rosto carregado,
ficaste, explicação de minha vida,
como os objetos perdidos na rua.
As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,
e tanta indecisão entre dois mares,
entre duas mulheres, duas roupas.
Toda essa mão para fazer um gesto
que de tão frágil nunca se modela,
e fica inerte, zona de desejo
selada por arbustos agressivos.
(Um homem se contempla sem amor,
se despe sem qualquer curiosidade.)
Mas vêm o tempo e a ideia de passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.
E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sono e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.
E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.