the arrow points
nowhere, and the vanished trace
turns man once more into man.
A VOZ
Uma canção cantava-se a si mesma
na rua sem foliões. Vinha no rádio?
Seu carnaval abstrato, flor de vento,
era provocação e nostalgia.
Tudo que já brincou brincava, trêmulo,
no vazio da tarde. E outros brinquedos,
futuros, se brincavam, lecionando
uma lição de festa sem motivo,
à terra imotivada. E o longo esforço,
pesquisa de sinal, busca entre sombras,
marinhagem na rota do divino,
cede lugar ao que, na voz errante,
procura introduzir em nossa vida
certa canção cantada por si mesma.
THE VOICE
A song was singing to itself
on a street without revelers. The radio?
Its abstract, wind-borne carnival
stirred excitement and nostalgia.
All that ever danced was dancing
in the empty afternoon. And other,
future dances danced, teaching
the unmotivated earth that feasting
needs no motive. And the long struggle,
the search for signs, the quest among shadows,
the doubtful voyage toward the divine,
all yields to what, in a roving voice,
a certain song that sings itself
seeks to bring into our life.
COMUNHÃO
Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo,
eu no centro.
Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis
pela expressão corporal e pelo que diziam
no silêncio de suas roupas além da moda
e de tecidos; roupas não anunciadas
nem vendidas.
Nenhum tinha rosto. O que diziam
escusava resposta,
ficava parado, suspenso no salão, objeto
denso, tranquilo.
Notei um lugar vazio na roda.
Lentamente fui ocupá-lo.
Surgiram todos os rostos, iluminados.
COMMUNION
All my dead were standing in a circle,
with me in the middle.
None had a face. I recognized them
by their body language and by what they said
in the silence of their clothes beyond fashion
and fabrics — clothes neither advertised
nor sold.
None had a face. What they said
needed no answer,
hovering in the room as a peaceful,
dense object.
I noticed an empty spot in the circle.
I slowly went and filled it.
All the faces lit up, visible.
AS IMPUREZAS DO BRANCO / IMPURITIES OF WHITE (1973)
DECLARAÇÃO EM JUÍZO
Peço desculpa de ser
o sobrevivente.
Não por longo tempo, é claro.
Tranquilizem-se.
Mas devo confessar, reconhecer
que sou sobrevivente.
Se é triste/cômico
ficar sentado na plateia
quando o espetáculo acabou
e fecha-se o teatro,
mais triste/grotesco é permanecer no palco,
ator único, sem papel,
quando o público já virou as costas
e somente baratas
circulam no farelo.
Reparem: não tenho culpa.
Não fiz nada para ser
sobrevivente.
Não roguei aos altos poderes
que me conservassem tanto tempo.
Não matei nenhum dos companheiros.
Se não saí violentamente,
se me deixei ficar ficar ficar,
foi sem segunda intenção.
Largaram-me aqui, eis tudo,
e lá se foram todos, um a um,
sem prevenir, sem me acenar,
sem dizer adeus, todos se foram.
(Houve os que requintaram no silêncio.)
Não me queixo. Nem os censuro.
Decerto não houve propósito
de me deixar entregue a mim mesmo,
perplexo,
desentranhado.
Não cuidaram de que um sobraria.
Foi isso. Tornei, tornaram-me
sobre-vivente.
Se se admiram de eu estar vivo,
esclareço: estou sobrevivo.
Viver, propriamente, não vivi
senão em projeto. Adiamento.
Calendário do ano próximo.
Jamais percebi estar vivendo
quando em volta viviam quantos! quanto.
Alguma vez os invejei. Outras, sentia
pena de tanta vida que se exauria no viver,
enquanto o não viver, o sobreviver
duravam, perdurando.
E me punha a um canto, à espera,
contraditória e simplesmente,
de chegar a hora de também
viver.
Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios,
testes, ilustrações. A verdadeira vida
sorria longe, indecifrável.
Desisti. Recolhi-me
cada vez mais, concha, à concha. Agora
sou sobrevivente.
Sobrevivente incomoda
mais que fantasma. Sei: a mim mesmo
incomodo-me. O reflexo é uma prova feroz.
Por mais que me esconda, projeto-me,
devolvo-me, provoco-me.
Não adianta ameaçar-me. Volto sempre,
todas as manhãs me volto, viravolto
com exatidão de carteiro que distribui más notícias.
O dia todo é dia
de verificar o meu fenômeno.
Estou onde não estão
minhas raízes, meu caminho:
onde sobrei,
insistente, reiterado, aflitivo
sobrevivente
da vida que ainda
não vivi, juro por Deus e o Diabo, não vivi.
Tudo confessado, que pena
me será aplicada, ou perdão?
Desconfio nada pode ser feito
a meu favor ou contra.
Nem há técnica
de fazer, desfazer
o infeito infazível.
Se sou sobrevivente, sou sobrevivente.
Cumpre reconhecer-me esta qualidade
que finalmente o é. Sou o único, entendem?
de um grupo muito antigo
de que não há memória nas calçadas
e nos vídeos.
Único a permanecer, a dormir,
a jantar, a urinar,
a tropeçar, até mesmo a sorrir
em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio,
como neste momento estou sorrindo
de ser — delícia? — sobrevivente.
É esperar apenas, está bem?
que passe o tempo de sobrevivência
e tudo se resolva sem escândalo
ante a justiça indiferente.
Acabo de notar, e sem surpresa:
não me ouvem no sentido de entender,
nem importa que um sobrevivente
venha contar seu caso, defender-se
ou acusar-se, é tudo a mesma
nenhuma coisa, e branca.
DECLARATION IN COURT
I beg pardon for being
the survivor.
Not for long, of course.
Set your minds at rest.
But I have to acknowledge, to confess,
I’m a survivor.
If it’s sad and comical
to keep sitting in the auditorium
after the show has ended
and the theater is closing,
it’s sadder, and grotesque, to be the sole actor
left onstage, without a role,
after the audience has all gone home
and only cockroaches
circulate in the sawdust.
Please note: it’s not my fault.
I didn’t do anything to be
a survivor.
I didn’t beseech the powers on high
to keep me going this long.