— Quem é o estrangeiro que fala de sinais? — perguntou um dos chefes, olhando para ele.
— Eu sou — respondeu. E contou o que havia visto.
— E por que o deserto ia contar isto a um estranho, quando sabe que estamos há várias gerações aqui? — disse outro chefe tribal.
— Porque meus olhos ainda não se acostumaram com o deserto — respondeu o rapaz. — E eu posso ver coisas que os olhos habituados demais não conseguem mais ver.
«É porque eu sei da Alma do Mundo», pensou consigo mesmo. Mas não falou nada, porque os árabes não acreditam nestas coisas.
— O Oásis é um terreno neutro. Ninguém ataca um Oásis — disse um terceiro chefe.
— Eu conto apenas o que vi. Se não quiserem acreditar, não façam nada.
Um completo silêncio abateu-se sobre a tenda, seguido de uma exaltada conversa entre os chefes tribais. Falavam num dialeto árabe que o rapaz não entendia, mas quando ele fez menção de ir embora, um guarda disse para ficar. O rapaz começou a sentir medo; os sinais diziam que havia alguma coisa errada. Lamentou haver conversado com o cameleiro a respeito.
De repente, o velho que estava no centro deu um sorriso quase imperceptível, e o rapaz tranqüilizou-se. O velho não havia participado da discussão, e não dissera uma palavra até aquele momento. Mas o rapaz já estava acostumado com a Linguagem do Mundo, e pode sentir uma vibração de Paz cruzando a tenda de ponta a ponta. Sua intuição dizia que havia agido corretamente em vir.
A discussão acabou. Ficaram em silêncio por algum tempo, ouvindo o velho. Depois, ele se virou para o rapaz: desta vez seu rosto estava frio e distante.
— Há dois mil anos, numa terra distante, jogaram num poço e venderam como escravo um homem que acreditava em sonhos — disse o velho. — Nossos mercadores o compraram e o trouxeram para o Egito. E todos nós sabemos que, quem acredita em sonhos, também sabe interpretá-los.
«Embora nem sempre consiga realizá-los», pensou o rapaz, lembrando-se da velha cigana.
— Por causa dos sonhos do faraó com vacas magras e gordas, este homem livrou o Egito da fome. Seu nome era José. Era também um estrangeiro numa terra estrangeira, como você, e devia ter mais ou menos a sua idade.
O silêncio continuou. Os olhos do velho se mantinham frios.
— Sempre seguimos a Tradição. A Tradição salvou o Egito da fome naquela época, e o fez o mais rico entre os povos. A Tradição ensina como os homens devem atravessar o deserto e casar suas filhas. A Tradição diz que um Oásis é um terreno neutro, porque ambos os lados tem Oásis, e são vulneráveis.
Ninguém disse qualquer palavra enquanto o velho falava.
— Mas a Tradição diz também para acreditarmos nas mensagens do deserto. Tudo que sabemos foi o deserto que nos ensinou.
O velho fez um sinal e todos os árabes se levantaram. A reunião estava para terminar. Os narguilés foram apagados, e os guardas se colocaram em posição de sentido. O rapaz preparou-se para sair, mas o velho falou ainda mais uma vez:
— Amanhã nós vamos romper um acordo que diz que ninguém no oásis pode portar armas. Durante o dia inteiro aguardaremos os inimigos. Quando o sol descer no horizonte, os homens me devolverão as armas. Para cada dez inimigos mortos, você receberá uma moeda de ouro.
«Entretanto, as armas não podem sair do seu lugar sem experimentarem a batalha. São caprichosas como o deserto, e se as acostumamos com isto, da próxima vez podem ter preguiça de disparar.
Se nenhuma delas tiver sido utilizada amanhã, pelo menos uma será usada em você.»
O oásis estava iluminado apenas pela lua cheia quando o rapaz saiu. Eram vinte minutos de caminhada até sua tenda, e ele começou a andar.
Estava assustado com tudo que havia acontecido. Tinha mergulhado na Alma do Mundo, e o preço por acreditar naquilo era a sua vida. Uma aposta alta.
Mas tinha apostado alto desde o dia em que havia vendido suas ovelhas para seguir sua Lenda Pessoal. E como dizia o cameleiro, morrer amanhã era tão bom como morrer em qualquer outro dia.
Todo dia era feito para ser vivido ou para abandonar o mundo. Tudo dependia apenas de uma palavra: «Maktub».
Caminhou em silêncio. Não estava arrependido. Se morresse amanhã, seria porque Deus não estava com vontade de mudar o futuro. Mas teria morrido depois de haver cruzado o estreito, trabalhado em uma loja de cristais, conhecido o silêncio do deserto e os olhos de Fátima. Tinha vivido intensamente cada um dos seus dias, desde que havia saído de casa, há tanto tempo atrás. Se morresse amanhã, seus olhos teriam visto muito mais coisas do que os olhos dos outros pastores, e o rapaz tinha orgulho disto.
De repente ouviu um estrondo, e foi jogado subitamente por terra, com o impacto de um vento que não conhecia. O lugar encheu-se de poeira, que quase cobriu a lua. Na sua frente, um enorme cavalo branco empinou soltando um relincho aterrador.
O rapaz mal podia ver o que se passava, mas quando a poeira assentou um pouco, sentiu um pavor que jamais havia sentido antes. Em cima do cavalo estava um cavaleiro todo vestido de negro, com um falcão em seu ombro esquerdo. Usava um turbante e um lenço que lhe cobria todo o rosto, deixando apenas os olhos de fora. Parecia o mensageiro do deserto, mas sua presença era mais forte do que todas as pessoas que havia conhecido na vida.
O estranho cavaleiro puxou a enorme espada curva que trazia presa à sela. O aço brilhou com a luz da lua.
— Quem ousou ler o vôo dos gaviões? — perguntou com uma voz tão forte que pareceu ecoar entre as cinquenta mil tamareiras do Al-fayoum.
— Eu ousei — disse o rapaz.
Lembrou-se imediatamente da imagem de Santiago Matamouros do seu cavalo branco com os infiéis sob as patas.
Era exatamente assim. Só que agora a situação estava invertida.
— Eu ousei — repetiu o rapaz, e abaixou a cabeça para receber o golpe da espada. — Muitas vidas serão salvas, porque vocês não contavam com a Alma do Mundo.
A espada, porém, não desceu rápido. A mão do estranho foi abaixando lentamente, até que a ponta da lâmina tocou na testa do rapaz. Era tão afiada que saiu uma gota de sangue.
O cavaleiro estava completamente imóvel. O rapaz também. Não pensou um minuto sequer em fugir. Dentro do seu coração, uma estranha alegria tomou conta dele: ia morrer por sua Lenda Pessoal. E por Fátima. Os sinais eram verdadeiros, enfim. Ali estava o Inimigo, e por causa disto ele não precisava se preocupar com a morte, porque havia uma Alma do Mundo. Daqui a pouco ele estaria fazendo parte dela. E amanhã o Inimigo faria parte dela também.
O estranho, porém, apenas mantinha a espada em sua testa.
— Por que você leu o vôo dos pássaros?
— Li apenas o que os pássaros queriam contar. Eles querem salvar o oásis, e vocês morrerão. O oásis tem mais homens que vocês.
A espada continuava em sua testa.
— Quem é você para mudar o destino de Allah?
— Allah fez os exércitos, e fez também os pássaros. Allah me mostrou a linguagem dos pássaros. Tudo foi escrito pela mesma Mão, — disse o rapaz, lembrando as palavras do cameleiro.
O estranho finalmente retirou a espada da testa. O rapaz sentiu um certo alívio. Mas não podia fugir.
— Cuidado com as adivinhações — disse o estranho. — Quando as coisas estão escritas, não há como evitá-las.
— Apenas vi um exército — disse o rapaz. — Não vi o resultado de uma batalha.
O cavaleiro parecia contente com a resposta. Mas mantinha a espada na sua mão.
— O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira?
— Busco minha Lenda Pessoal. Algo que você não entenderá nunca.
O cavaleiro colocou a espada na bainha, e o falcão no seu ombro deu um grito estranho. O rapaz começou a relaxar.