— Ninguém pode ser de muitas partes — o rapaz falou. — Eu sou um pastor e estou em muitas partes, mas sou de um único lugar, de uma cidade perto de um castelo antigo. Ali foi onde nasci.
— Então podemos dizer que eu nasci em Salem.
— O rapaz não sabia onde era Salem, mas não quis perguntar para não sentir-se humilhado com a própria ignorância. Ficou mais algum tempo olhando a praça. As pessoas iam e vinham, e pareciam muito ocupadas.
— Como está Salem? — perguntou o rapaz, procurando alguma pista.
— Como sempre esteve.
Ainda não era uma pista. Mas sabia que Salem não estava em Andaluzia. Senão, ele já a teria conhecido.
— E o que você faz em Salem? — insistiu.
— O que faço em Salem? — o velho pela primeira vez deu uma gostosa gargalhada.
— Ora, eu sou o Rei de Salem!
As pessoas dizem coisas muito estranhas, pensou o rapaz. Às vezes é melhor estar com as ovelhas, que são caladas, e apenas procuram alimento e água. Ou é melhor estar com os livros, que contam estórias incríveis sempre nas horas que a gente quer ouvir.
Mas quando a gente fala com pessoas, elas dizem certas coisas e ficamos sem saber como continuar a conversa.
— Meu nome é Melquisedec — disse o velho. — Quantas ovelhas você tem?
— O suficiente — respondeu o rapaz. O velho estava querendo saber demais sobre sua vida.
— Então estamos diante de um problema. Não posso ajudá-lo enquanto você achar que tem ovelhas suficientes.
O rapaz se irritou. Não estava pedindo ajuda. O velho é que tinha pedido vinho, conversa, e livro.
— Me devolva o livro — disse. — Tenho que ir buscar minhas ovelhas e seguir adiante.
— Me dê um décimo de suas ovelhas — disse o velho. — E eu lhe ensino como chegar até o tesouro escondido.
O rapaz tornou então a lembrar-se do sonho, e de repente tudo ficou claro. A velha não tinha cobrado nada, mas o velho — que era talvez seu marido — ia conseguir arrancar muito mais dinheiro em troca de uma informação que não existia.
O velho devia ser cigano também.
Antes que o rapaz dissesse qualquer coisa, porém, o velho abaixou-se, pegou um graveto, e começou a escrever na areia da praça.
Quando ele se abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que quase cegou o rapaz. Mas num movimento rápido demais para alguém de sua idade, tornou a cobrir o brilho com o manto. Os olhos do rapaz voltaram ao normal e ele pode enxergar o que o velho estava escrevendo.
Na areia da praça principal da pequena cidade, ele leu o nome do seu pai e de sua mãe.
Leu a história de sua vida até aquele momento, as brincadeiras de infância, as noites frias do seminário.
Leu o nome da filha do comerciante, que não sabia.
Leu coisas que jamais contara para alguém, como o dia em que roubou a arma do seu pai para matar veados, ou sua primeira e solitária experiência sexual.
«Sou o Rei de Salem», dissera o velho.
— Por que um rei conversa com um pastor? — perguntou o rapaz, envergonhado e admiradíssimo.
— Existem várias razões. Mas vamos dizer que a mais importante é que você tem sido capaz de cumprir sua Lenda Pessoal.
O rapaz não sabia o que era Lenda Pessoal.
— É aquilo que você sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no começo da juventude, sabem qual é sua Lenda Pessoal.
Nesta altura da vida, tudo é claro, tudo é possível, e elas não têm medo de sonhar e desejar tudo aquilo que gostariam de ver fazer em suas vidas. Entretanto, à medida em que o tempo vai passando, uma misteriosa força começa a tentar provar que é impossível realizar a Lenda Pessoal.
O que o velho estava dizendo não fazia muito sentido para o rapaz. Mas ele queria saber o que eram «forças misteriosas»; a filha do comerciante ia ficar boquiaberta com isto.
— São as forças que parecem ruins, mas na verdade estão ensinando a você como realizar sua Lenda Pessoal.
Estão preparando seu espírito e sua vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja você quem for ou o que faça, quando quer com vontade alguma coisa, é porque este desejo nasceu na alma do Universo. É sua missão na Terra.
— Mesmo que seja apenas viajar? Ou casar com a filha de um comerciante de tecidos?
— Ou buscar um tesouro. A Alma do Mundo é alimentada pela felicidade das pessoas. Ou pela infelicidade, inveja, ciúme. Cumprir sua Lenda Pessoal é a única obrigação dos homens. Tudo é uma coisa só.
E quando você quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que você realize seu desejo».
Durante algum tempo ficaram em silêncio, olhando a praça e as pessoas. Foi o velho quem falou primeiro.
— Por que você cuida de ovelhas?
— Porque gosto de viajar.
Ele apontou um pipoqueiro, com sua carrocinha vermelha, que estava num canto da praça.
— Aquele pipoqueiro também sempre desejou viajar, quando criança. Mas preferiu comprar uma carrocinha de pipoca, juntar dinheiro durante anos. Quando estiver velho, vai passar um mês na África. Jamais entendeu que a gente sempre tem condições para fazer o que sonha.
— Devia ter escolhido ser um pastor — pensou em voz alta o rapaz.
— Ele pensou nisto — disse o velho. — Mas os pipoqueiros são mais importantes que os pastores. Os pipoqueiros têm uma casa, enquanto os pastores dormem ao relento.
As pessoas preferem casar suas filhas com pipoqueiros do que com pastores.
O rapaz sentiu uma pontada no coração, pensando na filha do comerciante. Em sua cidade devia haver um pipoqueiro.
— Enfim, o que as pessoas pensam sobre pipoqueiros e sobre pastores passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal.
O velho folheou o livro, e distraiu-se lendo uma página. O rapaz esperou um pouco, e o interrompeu da mesma maneira como ele o havia interrompido.
— Por que você fala estas coisas comigo?
— Porque você tenta viver sua Lenda Pessoal. E está a ponto de desistir dela.
— E você aparece sempre nestas horas?
— Nem sempre desta forma, mas jamais deixei de aparecer.
Às vezes apareço sob a forma de uma boa saída, uma boa ideia.
Outras vezes, num momento crucial, faço as coisas ficarem mais fáceis. E assim por diante; mas a maior parte das pessoas não nota isto.
O velho contou que na semana passada ele tinha sido forçado a aparecer para um garimpeiro sob a forma de uma pedra. O garimpeiro tinha largado tudo para ir em busca de esmeraldas. Durante cinco anos trabalhou num rio, e tinha quebrado 999.999 pedras em busca de uma esmeralda. Neste ponto o garimpeiro pensou em desistir, e só faltava uma pedra — apenas UMA PEDRA — para ele descobrir sua esmeralda. Como ele tinha sido um homem que havia apostado em sua Lenda Pessoal, o velho resolveu interferir. Transformou-se numa pedra que rolou sobre o pé do garimpeiro. Este, com a raiva e frustração dos cinco anos perdidos, atirou a pedra longe. Mas atirou com tanta força que ela bateu em outra pedra e esta se quebrou, mostrando a mais bela esmeralda do mundo.
— As pessoas aprendem muito cedo sua razão de viver — disse o velho com uma certa amargura nos olhos. — Talvez seja por isso que elas desistem tão cedo também. Mas assim é o mundo.
Então o rapaz se lembrou que a conversa havia começado com o tesouro escondido.
— Os tesouros são levantados da terra pela torrente de água, e enterrados por estas mesmas enchentes — disse o velho. — Se você quiser saber sobre seu tesouro, terá que me ceder um décimo de suas ovelhas.
— E não serve um décimo do tesouro?
O velho ficou decepcionado.
— Se você sair prometendo o que ainda não tem, vai perder sua vontade de consegui-lo.
O rapaz então contou que tinha prometido um décimo à cigana.