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Menos o mais pequeno dos espectadores.

"Beatriz! Beatriz!"

A criada, passado o torpor do primeiro impacto provocado pela espantosa cena, reparou no apelo do protegido, de braços erguidos como se pedisse colo, e inclinou-se para o ajudar.

"Anda cá, Zezinho."

Beatriz pegou em José e elevou-o para a posição mais alta que pôde, tão elevada que o pequerrucho conseguiu espreitar por entre o mar de cabeças e enxergar o fenómeno que todos admiravam; era realmente coisa única, prodígio da natureza, visão de assombrar.

"Olha", admirou-se o pequeno. "Um preto." •

Foi o primeiro que viu na vida.Puxado pela mão firme da mãe, José desceu a rua calcetada até à Igreja da Misericórdia, corria uma aragem gelada na manhã cinzenta de Outubro de 1943. Diante da Farmácia Oliveira aglomerava-se uma pequena multidão, barulhenta mas tranquila, e foi entre o magote de pessoas que mãe e filho passaram, esgueirando-se pela apertada e concorrida porta de um anexo ao lado da farmácia.

José galgou as escadas encostado à parede, a custo, esforçando-se por acompanhar a mãe.

Ultrapassaram os muitos homens e poucas mulheres que aguardavam nos degraus, pacientes, todos em fila à espera da sua vez de chegarem ao topo. Um cheiro azedo a vinho e urina seca impregnava as roupas imundas daquelas gentes do povo, eles com chapéus escuros e a barba por fazer, elas de lenços pretos na cabeça e saias largas até aos pés.

Ainda atrás da mãe, o pequeno alcançou o cimo da escadaria e entrou na sala.

"O seguinte!", chamou uma voz familiar.

Era o pai.O capitão encontrava-se sentado a uma velha secretária no centro da sala, no anexo instalado mesmo por cima da Farmácia Oliveira. Estavam na sede da Comissão de Racionamento de Penafiel, que Mário Branco chefiava, e José observou o pai a distribuir senhas à população, fardado a rigor e ajudado por uma ordenança que controlava a fila.

Uma mulher de idade, curvada e amparada numa bengala, aguardava sob a ombreira da porta e avançou quando o oficial chamou pela pessoa seguinte. Branco reconheceu Amélia e o filho e fez sinal com a cabeça de que esperassem; atendeu a idosa, assentou uma informação num caderno coberto de nomes, a lista de todos os que tinham direito às senhas de racionamento, e entregou-lhe as almejadas folhinhas de papel colorido. Quando a velhota se retirou, fez um gesto com a mão na direcção da mulher, pedindo-lhe que se aproximasse.

"O que é, minha querida?", sussurrou, levemente agastado por ver o trabalho interrompido pela família. Detestava misturas entre as funções militares e as questões domésticas. "Passa-se alguma coisa?"

"Passa, passa!", protestou Amélia. "Muita coisa."

"Então?"

"Então não temos açúcar, não temos arroz, não temos leite, não temos manteiga, não temos pão, não temos azeite, não temos..."

"Sim, querida, já sei", interrompeu o capitão com paciência, mantendo a voz baixa para não ser escutado pelos que aguardavam na fila. "E o que queres que te faça?"

Amélia fez um ar espantado.

"O que quero que faças? Ora essa!" Apontou para o filho mais novo. "Estás a ver aqui o Zezinho? Estás a ver? Anda escanzelado que nem um palito, coitadinho! Olha para ele! Olha!

Parece um cabrito esfaimado."

O capitão olhou, toda a gente olhou, e José encolheu-se, envergonhado por ser assim exibido em público, um vulgar bezerro exposto à devassa alheia.

"O Zezinho está magro, eu sei", admitiu Mário Branco, voltando a atenção para a mulher. "Mas nos dias que correm anda toda a gente magra, querida. Os tempos são difíceis, a Intendência Geral dos Abastecimentos faz o que pode, mas a verdade é que a guerra provocou esta carência de bens e não temos maneira de resolver o problema!"

"Eu não quero cá saber de coisas! O que sei é que falta comida lá em casa!"

"Faltam coisas, bem sei. Mas olha que estamos melhor do que a maioria das pessoas, uma vez que temos duas quintas."

"Ora, isso só dá vinho, repolhos e hortaliças! Eu estou a falar de bens variados! Eu estou a falar de..."

"Sim, já percebi", retorquiu o capitão. Encolheu os ombros, com uma expressão impotente. "Mas o que queres que te faça? Diz-me!"

Amélia fez um gesto largo com as mãos, girando-as em redor de modo a abarcar toda a sala da sede da Comissão de Racionamento.

"Homessa! Então não és tu aqui o chefe desta chafarica?"

"Sim..."

"Então resolve tu isso!"

"Resolvo como?"

A mulher inclinou-se para a frente, de modo a poder baixar a voz e ser na mesma escutada pelo marido.

"Ora!", sussurrou. "Dá mais senhas à família!"

Mário Branco revirou os olhos e suspirou, dominando a irritação.

"Ó querida, já te expliquei mais de mil vezes que não posso fazer isso! Nós recebemos aqui uma determinada quantidade de alimentos e produtos racionados e eles têm de chegar para toda a gente. Se eu puser mais senhas para a nossa família, estou a retirar senhas a outras famílias, estás a perceber? Achas isso bem? Achas?"

"Mas não és tu o chefe disto?"

"Sou."

"Então faz o que tens a fazer!", insistiu, sempre a sussurrar para não ser escutada pelas pessoas que faziam fila à porta. "Dá mais senhas à tua família!"

"Mas eu estou a dizer-te que não posso fazer isso! Teria de tirar senhas a outras famílias!"

"És mesmo ingénuo!", exclamou Amélia com a expressão de uma mãe a repreender o filho que deixa que os outros lhe bam à frente. "Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é tolo ou não tem arte."

"Não me venhas com provérbios!"

"Não são provérbios, é a verdade!", murmurou com intensidade, exasperada. "Então não sabes que há para aí muito chefe de serviços de racionamento que guarda sempre um pouco mais para si e para a sua família?" Ergueu o indicador de modo peremptório. "E, se queres que te diga, fazem eles muito bem!"

"Isso não sei e não ligo a conversa de pacóvios. O que sei é que tenho os meus deveres e cumpro-os o melhor que posso."

A mulher fez um trejeito nervoso.

"Olha lá, então de que serve seres o chefe desta coisa?"

"Bem... é o meu trabalho..."

Amélia ergueu a voz, a exasperação no limite.

"O teu trabalho? A tua família passa fome e tu, que és pai de filhos e meu marido, preferes dar alimentos aos outros? Então e nós?"

"Mas nós temos tanta comida como os outros, querida. Nem mais nem menos! Temos o mesmo que os outros."

"És um somítico! Vês-nos a passar fome e só nos dás a porcaria de umas senhas que quase não servem para nada! Irra!"

O capitão cerrou os olhos e esperou um instante até responder. Uma nova transformação havia-se operado na mulher e dava-lhe a impressão que Amélia não lhe poderia dar mais surpresas.

Parecia-lhe uma rapariga triste quando se tinham casado, depois ficara alegre, mais tarde distante, depois prostrada, a seguir tornara-se uma beata e nesse momento, com a guerra e o seu infindável desfile de dificuldades, transformara-se numa guerreira. E em nada era moderada.

"Amélia", disse por fim, a voz de trovão a denunciar uma falsa calma. "Vai imediatamente para casa! Falamos depois." Virou o rosto para a porta, dando a conversa por terminada. "O seguinte!"

"Mas isto não..."

"O seguinte!", trovejou Mário Branco ainda mais alto, ignorando ostensivamente a mulher.

Não eram dias fáceis para o capitão Branco.

O oficial, chamado da reserva quatro anos antes para preparar planos de contingência para a eventualidade de serem decretados racionamentos, não dispunha de um minuto de descanso na gestão dos parcos recursos alimentares postos à sua disposição para distribuir por toda a população de Penafiel. Quando regressou ao activo, em 1939, o coronel Silvério nomeou-o segundo comandante do regimento; era o mínimo que poderia fazer por um oficial tão prestigiado, que servira o país e se mantivera tão firme na defesa da honra do exército durante os delicados primeiros meses da guerra de Espanha.