Mário Branco começou por fazer um recenseamento da população da cidade, tarefa que lhe consumiu muito tempo e energia, mas, quando terminou a empreitada, os racionamentos não tinham ainda sido decretados. A verdade é que o regime resistiu o mais que pôde à decisão de os instaurar, apesar da permanente deterioração das condições de vida. O país dependia em grande parte das nações beligerantes para o abastecimento de matérias-primas e outros produtos essenciais, e a situação foi agravada quando os Aliados decretaram um bloqueio comercial a Portugal. A medida constituiu uma retaliação pela decisão tomada pelo governo de manter a mais estrita neutralidade, tratando as duas partes em conflito da mesma maneira e mantendo vínculos comerciais intensos com a Alemanha. Os Aliados queriam a neutralidade portuguesa, mas achavam que ela lhes devia ser benéfica, e, como isso nem sempre acontecia, fecharam a torneira ao país.
Os produtos começaram a faltar. Faltavam bens e os que havia eram demasiado caros, inacessíveis à generalidade da população; nas cidades e no campo, a fome espalhou-se, insidiosa primeiro, ostensiva depois. Os salários foram congelados para travar a inflação, mas isso não resolveu o problema da carência de bens de consumo. Surgiram protestos de rua, e depois greves, por fim revoltas de camponeses.
Foi então que Salazar decretou os racionamentos.
"É a única maneira de fazer com que haja produtos para todos", explicou o coronel Silvério quando chamou Mário Branco para que activasse a Comissão de Racionamento de Penafiel. "Se não houver racionamento, só os que têm dinheiro é que podem comprar comida."
Mas o capitão Branco não precisava de explicações; conhecia muito bem a situação e só se admirava por a ordem ter levado tanto tempo a chegar. Logo que saiu do gabinete do seu superior hierárquico foi buscar o livrinho do recenseamento e chamou uma ordenança. Em apenas alguns dias conseguiu actualizar a lista de recenseamento e instalar a sede da comissão no anexo por cima da Farmácia Oliveira. O trabalho foi completado com tal presteza que, no momento em que recebeu as primeiras senhas para distribuição, a comissão já se encontrava pronta para iniciar as operações.
Os pedidos para "facilitar" as coisas multiplicaram-se, sobretudo os que vinham das famílias mais abastadas da cidade, levando o chefe da comissão de racionamento a repetir à exaustão a mesma frase:
"Aqui não há cunhas!"
Que o marido não facilitava nas cunhas já o percebera Amélia. Pois se nem a própria família conseguia de Mário Branco mais senhas, quem o conseguiria?
Enervada com a intransigência do marido, Amélia desceu as escadarias da comissão consumida por um sentimento de revolta irreprimível. Trazia o pequeno José pelo braço, mas era como se o tivesse esquecido, o corpo todo ele um motim, a mente atormentada pelo problema de arranjar bens que alimentassem a família.
"Onde é que já se viu isto?", resmungava Amélia para si mesma, absorta no problema que não via como resolver. "Nem à própria família! Nem à própria família!"
Sempre a arrastar o filho, só despertou para o presente no momento em que, percorrendo a rua até à zona do tribunal, entrou na mercearia do Pacheco e se plantou na fila. Tinha três pessoas à frente. Suspirou com impaciência, mas fez um esforço para se acalmar. Desde que, meses antes, se apercebera de que havia menos comida no prato dos filhos que havia abandonado o mundo de missas, eucaristias e sacramentos onde se refugiara. Ainda sentia uma dor dilacerar-lhe o peito sempre que a mente lhe revolvia o passado, mas o luto por tudo o que perdera estava feito e percebeu que chegara a hora de reagir.
Enquanto deambulava pelos caminhos que a sua vida tomara, meteu a mão no bolso esquerdo e extraiu as três senhas que ainda lhe restavam do conjunto semanal a que tinha direito. Eram pequenos papéis rectangulares, picotados no derradeiro quinto para que fosse possível guardar um talão comprovativo do seu uso; pelo meio ostentavam, em maiúsculas e a negro carregado, o nome do produto a que se destinavam.
Uma das senhas que retirou do bolso dizia "batata", a segunda assinalava "carvão, lenha e petróleo" e a terceira "manteiga, queijo e outros lacticínios". Franziu o sobrolho. Tinha ideia de que lhe restava ainda uma senha que lhe dava direito a algo bem melhor. Vasculhou o bolso esquerdo, mas nada encontrou. Depois procurou no bolso direito, novamente sem sucesso. Abriu a mala de mão e esquadrinhou o interior até sentir um papelinho roçar-lhe os dedos.
"Ah!", exclamou em triunfo. "Está aqui o malvado!..."
"O que é, mãe?"
A vozinha relembrou a Amélia a presença do filho. Passou- -lhe a mão pelo cabelo, tranquilizadora.
"Não é nada, Zé. Era eu que andava à procura disto."
Extraiu da malinha de mão um talãozinho pequeno. Mostrou-o ao filho e depois virou-o para si mesma. Sentiu um baque. O talão não dizia o que ela esperava. O papelinho registava simplesmente "carta de racionamento de sabão".
"Meu Deus!"
Alarmada, quase em pânico perante a possibilidade de ter perdido o talão mais precioso de todos, procurou de novo na mala, revolveu o interior até roçar com os dedos num novo papel.
Extraiu-o com um movimento brusco, sôfrego até, e devorou com os olhos a referência ao produto a que tinha direito. "Bacalhau." Suspirou de alívio e sentiu um peso soltar-se-lhe do peito. Nesse domingo teriam direito a mais do que a habitual dieta de batatas com vegetais.
A fila entretanto ia avançando e Amélia constatou que só restava um cliente à sua frente. Voltou a passar os olhos pelas senhas e espreitou os bens guardados a granel nos sacos de serapilheira ou exibidos na vitrina atrás do merceeiro. O Pacheco tinha a melhor mercearia de Penafiel, um estabelecimento sempre bem apetrechado com os mais variados bens, incluindo requintes como bolachas, rebuçados e café do Brasil e de Moçambique, e ainda um espaço com brinquedos para a pequenada.
Mas foi ao ver os preços dos produtos que Amélia sentiu o coração dar mais um salto.
"Virgem Maria!"
"O que foi, mãe?"
Passou de novo a mão pelos cabelos do filho.
"Não é nada, Zezinho. Sou eu que estou a ficar cansada."
O que assustara Amélia fora a escalada de preços que via reflectida no preçário galopante que o merceeiro rabiscara nos sacos de serapilheira e nos produtos daquela vitrina. O custo do quilo de batatas havia duplicado e o da manteiga também. Espreitou para os sacos por baixo do armário e verificou que o mesmo acontecia com a fruta e o peixe. O bacalhau ia sair-lhe caro, constatou com desânimo enquanto afagava o talão correspondente. Outros bens essenciais haviam sofrido um forte aumento, como era o caso do arroz, do açúcar, do sabão e do azeite. Todos estes produtos estavam racionados, o mesmo sucedendo com as massas, os óleos alimentares, o leite, o café, o cacau, o grão, os cereais, o pão, as farinhas...
"O seguinte!"
A voz do merceeiro puxou-a para diante do balcão.
"Bom dia, senhor Pacheco."
"Ora viva, dona Amélia! Estou a ver que hoje trouxe o pequerrucho." Sorriu para José. "Então, pirralho, também vens às compras?"
O pequeno deu um passo em frente e colou-se ao balcão, indicando as senhas que a mãe tinha na mão.