"Hoje é bife do lombo."
O merceeiro soltou uma gargalhada.
"É minorca, mas já tem sentido de humor, hem?"
A freguesa fez uma careta resignada e estendeu as senhas ao merceeiro.
"O meu Zezinho é um brincalhão, senhor Pacheco. Haja alguém que se ria, porque as coisas não andam nada fáceis..."
"Lá isso é verdade."
O merceeiro pegou nas senhas que a cliente lhe entregou e inspeccionou-as. Vinham todas numeradas e carimbadas, como era regulamentar. Além disso, estavam destinadas ao chefe de família, com referência completa a morada, profissão e agregado familiar, mas Pacheco sabia que Amélia dispunha de poderes para levantar os produtos em nome do marido.O dono da mercearia pegou na cesta que a freguesa havia pousado sobre o balcão e voltou-se de costas. Tirou os produtos do armário atrás dele, carimbou o talão picotado, guardando-o como prova de que a senha tinha sido utilizada, e devolveu a cesta à cliente.
"Aqui está, dona Amélia! Dá para um banquete!"
A tensão em casa aumentou ainda mais no dia em que o coronel Silvério chamou Mário Branco ao seu gabinete e lfyp fez um anúncio inesperado.
"Como chefe da comissão de racionamento, o nosso capitão tem direito a uma regalia especial", anunciou-lhe. "Disporá doravante, e enquanto a comissão existir, de um automóvel com motorista."
A novidade colheu o capitão de surpresa.
"Para que preciso eu de automóvel com motorista, meu coronel? De minha casa até ao quartel são uns meros vinte minutos de passeio higiénico. E é menos ainda se caminhar apenas até à sede da comissão."
"E a dignidade do cargo, meu caro. O senhor é agora uma das pessoas mais importantes da cidade e tem de ter tratamento condigno com a sua posição."
O capitão não se mostrou convencido com a regalia, e as suas reticências não constituíam mera encenação, mas uma objecção de facto. Sempre achara que um dos problemas do país era a proliferação de pessoas "importantes" e, talvez por partida do destino, esse estatuto questionável era-lhe agora atribuído em todo o seu esplendor. Porém, se o comandante insistia, quem era ele para o contrariar?
A novidade foi, não com surpresa, bem acolhida pela mulher quando o capitão falou do assunto à mesa, no momento em que já digeria o jantar com o habitual cálice de vinho do Porto.
"Só agora é que nos contas isso?", questionou Amélia, um sorriso de satisfação a desmentir o tom melindrado da pergunta. "Onde está esse carro e esse chauffeur?"
"Vem amanhã buscar-me para me levar para o trabalho."
A mulher rebentava de orgulho. A regalia significava, na prática, que o marido atingia o estatuto até ali reservado ao presidente da câmara e ao comandante do quartel.
"Se queres saber, acho muito bem!", exclamou com incontida satisfação. "Depois de tudo o que te fizeram na altura da guerra de Espanha, já estava na hora de te tratarem com a dignidade a que tens direito!"
O aparecimento do automóvel e do motorista à porta de casa foi um acontecimento digno de ser registado nos anais da história da Rua Zeferino de Oliveira em Penafiel. Logo pela manhã Amélia mandou discretamente Beatriz alertar a vizinhança e deu o pequeno-almoço mais cedo aos filhos.
Sôfregos de excitação, os quatro irmãos engoliram o leite a correr e, ainda não eram seis e meia, plantaram-se na varanda do primeiro andar a espreitar todos os automóveis que passavam diante da casa.
"É este!", exclamou António no instante em que viu o primeiro carro aparecer na rua. "E este!"
"Não é nada, parvo", corrigiu Lourdes. "Este é o do doutor Reis, não vês?"
"E aquele! E aquele!"
As viaturas passavam e, apesar de um fracasso suceder a outro, a expectativa ia aumentando. O
único que se começou a sentir cansado foi o pequeno José, que depressa desviou a atenção para outros pontos da rua. Os vizinhos encheram também as suas varandas, já devidamente alertados por Beatriz e atraídos pela excitação dos pequenos.
O olhar de José caiu então sobre uma rapariguinha de cabelo castanho-claro aos canudos que aparecera à varanda dos vizinhos do lado esquerdo; era magra, com pernas altas e uma expressão traquina no rosto, onde cintilavam dois olhos de um verde-esmeralda refulgente. Deveria ter uns sete anos, como ele. Observou-a fixamente, mas desviou o olhar no momento em que ela o notou, a timidez mais forte do que a curiosidade.
"Ó p'rá'quele! Ó p'rá'quele!"
A atenção de José regressou ao que se passava lá em baixo. Viu os olhares convergirem para um
Ford negro com um soldado ao volante que fazia a curva ali à direita. A viatura reluzia de tão impecavelmente lavada, até os pneus brilhavam. Entrou na rua com um ronronar majestoso e, mesmo em frente, virou para o lado da casa dos Branco e estacionou tranquilamente aos pés dos espectadores.
Levantou-se todo um bruá nas varandas.
A porta de casa abriu-se e o capitão Branco, pálido de embaraço, dirigiu-se em passo lesto para o automóvel, cuja porta traseira havia sido aberta pelo solícito motorista. Uma salva de palmas reverberou pela rua, acompanhada por assobios e vivas, como se o próprio presidente do Conselho ali estivesse de passagem. Amélia acompanhou o marido com a sua melhor fatiota de domingo e fez tenção de entrar pela porta escancarada da viatura quando a mão do capitão a travou.
"Onde vais?", admirou-se Mário Branco.
"Ora", retorquiu ela, esboçando um trejeito de primeira- dama de Penafiel. "Tenho de ir à Pastelaria Brasil."
"Agora?"
"Pois claro! Se tens carro com cbauffeur, temos de usufruir dele, não é verdade?"
O capitão respirou fundo, num esforço para ocultar o ar contrariado. Sentia os olhares dos filhos e da vizinhança pousados neles, um factor de inibição para que tomasse uma atitude mais severa.
A verdade, porém, é que não podia deixar a coisa correr. Olhou para o motorista, que aguardava junto à porta do Ford que ambos entrassem, e indicou o volante.
"Vai andando", ordenou. "Hoje vou a pé."
"Sim, meu capitão!"
O motorista fez continência e meteu-se no automóvel perante o olhar embasbacado de Amélia e a surpresa da multidão que se juntara para testemunhar o grande acontecimento.
"O que estás a fazer?", perguntou a mulher, sem entender o que acontecera. "Porque o mandaste embora?"
O capitão deu-lhe o braço e puxou-a com suavidade, fazendo-lhe sinal de que o acompanhasse.
Forçou um sorriso e começaram a descer a rua de braço dado, obrigando os mirones a abrir alas para os deixarem passar. O oficial aligeirou o passo, a compostura em primeiro lugar, e só quando se sentiu longe dos ouvidos indiscretos abriu a boca.
"O carro que me entregaram é do estado e apenas se destina a funções do estado", murmurou sempre com um sorriso. Podia não ser escutado mas era decerto observado. "Só eu posso andar nele e apenas quando estou de serviço. Se eu for ao clube dos oficiais jogar bilhar, tenho de ir a pé.
Seria um abuso inaceitável usar esta viatura para fins pessoais, entendes?"
"Mas a Pastelaria Brasil fica em caminho", argumentou Amélia. "O carro não consome nem mais um mililitro de gasolina se me levares contigo..."
"O carro é só para deslocações de serviço."
"Levas-me durante essa deslocação de serviço. Vais à sede da comissão e largas-me a meio. O
estado não gasta nem mais um tostão só porque eu também vou lá dentro."
"Não é uma questão de gastar mais ou menos", devolveu o marido num tom quase pedagógico.
"E uma questão de princípio. Trata-se de uma viatura oficial e destina-se exclusivamente a uso oficial. Qualquer outro uso não é uso, é abuso."