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"Mas toda a gente usa os carros oficiais para outras coisas, Mário. O presidente da câmara, por exemplo. Ainda no outro dia o vi na..."

"Nós não somos toda a gente, Amélia", cortou o capitão. "Este país não se endireita se não houver pessoas que dêem o exemplo. A liderança exerce-se dando o exemplo."

"Mas quem é que se importa com isso?", protestou Amélia, erguendo um tudo-nada a voz.

"Ninguém! Só tu! Toda a gente que tem carro do estado faz isso. Se tu fizeres, achas que alguém te condena?"

"Não sei se alguém me condenará, mas sei que eu próprio me condenarei e isso chega-me."

"Oh, que tolice!"

A montra da Pastelaria Brasil cintilava já ao fundo da rua, reflectindo a luz límpida do Sol que se erguia sobre os telhados fronteiros. O capitão ajeitou o casaco e o chapéu antes de se voltar de novo para a mulher.

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"Podes dizer o que quiseres, mas o facto é que a viatura que me foi atribuída é do estado e só pode ser usada em funções de estado. A apropriação de meios do estado para fins privados tem nome e esse nome é corrupção. Isso eu não faço."

Desde a famosa manhã do aparecimento do carro de serviço atribuído ao pai que José espreitava amiúde a casa dos vizinhos num esforço de vislumbrar de novo a rapariguinha do cabelo castanho-claro aos canudos e olhar traquina, embora raramente com sucesso e sempre apenas de fugida. Tentava-o de novo nessa tarde, sentado na varanda a espreitar a casa vizinha, quando viu o Ford negro estacionar diante de casa, como se tornara habitual àquela hora, e o pai sair do interior e ir buscar à bagageira um pneu de automóvel.

A visão encheu-o de espanto e curiosidade, pelo que se pôs de pé num salto e se meteu de imediato em casa. Foi a correr até à cozinha, onde encontrou à volta do fogão a mãe e a tia Joana mais Beatriz e a sua irmã Lourdes.

"O pai chegou!", anunciou-lhes.

Como em confirmação, sentiram nesse instante os sons familiares dos passos do homem da casa a galgar as escadas e a calcorrear o soalho da sala de jantar, até que assomou à porta da cozinha e exibiu com ar matreiro o troféu que trazia debaixo do braço.

"Ora vejam lá isto!", exclamou o capitão, erguendo o pneu. "Adivinhem o que é."

Olharam as três mulheres e os dois pequenos para o grande objecto circular de borracha, já velho e gasto.

"Isso é um pneu", constatou Amélia, com o trejeito característico de quem acabou de expor uma evidência. "Ainda por cima imundo. Tira-o daqui!"

O marido riu-se.

"Que isto é um pneu já eu sei", disse, ignorando a ordem. "Mas adivinhem para que serve."

"Ora!", exclamou a mulher, abanando a cabeça e voltando as costas, mais preocupada com a panela ao lume. "Tens cada uma! Para que serve um pneu?"

"Diz lá", insistiu o capitão, fixando a nuca de Amélia.

"Para pôr nas rodas", devolveu ela, encolhendo os ombros. "Ora esta!"

"Pois estás enganada."

A mulher voltou a cabeça.

"Ai um pneu não serve para pôr nas rodas?"

"Não este pneu."

"Ai não? Então serve para quê?"

O capitão pegou na borracha preta, torceu-a e exibiu a câmara-de-ar escondida no interior.

"Quem quer azeite?", perguntou, dirigindo-se a todos os que o observavam na cozinha. "Quem quer azeitinho bom de Alfândega da Fé?"

"Azeite?" Inclinaram-se todas para o pneu, analisando a câmara-de-ar. "Qual azeite?"

"Estão a ver isto?", disse o capitão, apontando para as manchas de gordura no interior do pneu.

"Foi aqui dentro que os traficantes esconderam o azeite para vender no mercado negro. Na câmara-de-ar." Ergueu o sobrolho e sorriu. "Hã? Gente danada para a vigarice, não é?"

O pneu alimentou a conversa durante uma semana. A história espalhou-se por toda a parte e tornou-se uma admiração. "Vejam lá a imaginação desta gente!", dizia-se. Fizeram-se nas casas e pela cidade piadas e graçolas em torno dos "azeiteiros dos pneus", com profusos comentários à

"propensão para a aldrabice", episódio tão caricato que muitos serões alimentou de gargalhadas.

O capitão Branco, porém, sabia que o sucedido era o sintoma de um mal mais profundo. Com a guerra a apertar e a economia estrangulada, o país dava sinais inequívocos de asfixia.A infância de José Branco, em particular a idade crucial entre os três e os nove anos, foi passada em economia de guerra e vivida debaixo da severa austeridade que marcava os tempos.

Como qualquer criança que tudo encara com normalidade, o pequeno habituou-se ao rigor e à frugalidade deste período. Frequentava a Escola Primária Conde Ferreira, mesmo ao lado do quartel, onde o material era poupado até ao último pedaço. Para não gastar lápis nem papel os alunos rabiscavam as ardósias, a que chamavam "lousas", a giz. Foi o tempo em que José chegava a casa com as mãos secas e o pó branco entranhado nas unhas e nos dedos; tirá-lo no Inverno, com as mãos inchadas de frieiras e usando água gelada, revelou-se uma tortura diária.

Mas o maior suplício em casa eram as refeições à base de produtos alternativos. Como os bens alimentares escasseavam, cozinhava-se com barras brancas que vinham de África e que o merceeiro Pacheco pomposamente anunciava como "gordura de coco". Pela manhã, em vez do tradicional chá, comia-se canja. Já o café com leite foi substituído por uma farinha dissolvida em água, feita à base de banana e cacau, chamada "banacau"."Porcaria!"

José odiava o banacau. Beatriz, a criada sempre zelosa na protecção do mais novo da família, fazia questão de não consumir a sua ração semanal de açúcar. Poupava-a e oferecia-a depois ao seu protegido; sabia que sem açúcar não haveria maneira de o pequeno engolir o maldito banacau. Era com aquela ração poupada com tanto sacrifício pela jovem empregada que José conseguia adocicar a dose diária da estranha bebida.

A vida em Penafiel decorria numa pacatez assustada, pautada pelo ritmo austero e severo de um país voltado sobre si mesmo, transformado numa ilha triste e temerosa, intimidada pelo mar revoltoso do mundo. O ciclo de vida na pequena povoação duriense era marcado pelas intermináveis filas diárias diante da comissão de racionamento e pelo toque tranquilizador dos sinos das suas inúmeras igrejas; a todas as horas soava nas múltiplas torres espalhadas pela cidade um concerto desafinado de chocalhos, mas as batidas mais sonoras vinham do imponente santuário do Sameiro, afinal a igreja mais próxima de casa e aquela onde os Branco se habituaram a comungar.

Os domingos fizeram-se em Penafiel para celebrar missa. Estivesse frio ou chovesse sem interrupção, podia até o vento uivar e arrancar árvores pela raiz, nada disso importava porque Amélia obrigava toda a família a sair de casa com as suas melhores roupas e a abalar monte acima, na direcção da grandiosa estrutura da Igreja do Sameiro.

José assistia às homilias sem entusiasmo; tudo aquilo lhe parecia aborrecido e cansativo, uma interminável lengalenga incompreensível, criada com o objectivo exclusivo de lhe arruinar os domingos. Nos Invernos sentia os pés doerem-lhe com o frio exalado pelo piso duro do templo; era como se o chão de pedra fosse constituído por enormes blocos de gelo, húmidos e glaciais.

A coisa tornou-se, porém, mais interessante quando certo domingo vislumbrou numa das filas do meio da igreja a rapariguinha do cabelo castanho-claro aos canudos e olhos ver- de-esmeralda.

A partir daí as missas passaram a ser um ponto alto da semana, em particular quando as homilias acabavam e os fiéis começavam a dispersar. José recorria então aos mais variados pretextos para se afastar apressadamente da família e descer até casa sozinho, mantendo sempre a jovem vizinha debaixo de olho como um caçador no encalço da presa.