Percorreram a enfermaria e foram para o banco de urgências, onde uma enfermeira cabo-verdiana fazia um curativo a um adolescente franzino e sujo. O rapaz fitou, assustado, os recém-chegados e José notou que tremia de medo.
"O que se passa?"
A enfermeira limpava uma ferida no joelho direito do rapaz.
"Ele só fala nhungué, doutor", esclareceu a cabo-verdiana. "Mas pelos gestos que fez consegui perceber que veio do sítio onde está o fumo."
"Ele veio de lá?"
"Parece que sim."
O médico fez uma expressão interrogativa na direcção da irmã Lúcia; sabia que a freira arranhava umas palavras de nhungué.
"O pobrecito está muy nervoso y no entendi quase nada", explicou a espanhola, sentindo-se interpelada pelo olhar do director do hospital. "Solo una palabra, que repete a todo o momento."
"O quê?"
"Tropa. Dice que é tropa."
"Tropa?"
"Si. Apontou para o sítio das explosiones e do fumo e dice tropa."
O médico fez um gesto na direcção do corredor. Duas senhoras da limpeza estavam imobilizadas ao fundo, os olhos colados no ferido; pareciam observá-lo com um receio supersticioso.
"E elas? Não podem traduzir o que diz o moço?"
"Tienen medo", devolveu Lúcia, sem sequer olhar para as mulheres do corredor. " Pero despues de escucharem el rapaz puseram-se a gemer e a dicer que a tropa está a matar gente."
José Branco estreitou os olhos enquanto digeria o que ouvia. Deu uns passos na direcção da janela e contemplou a multidão que se apinhava no pátio do hospital.
"Tropa a matar gente?"
A irmã Lúcia foi ter com ele.
"Doutor, tenemos que ir lá."
O médico permaneceu calado, a avaliar a situação. Tropa a matar gente? Se a tropa atacava, raciocinou, era porque havia turras. Mas também sabia que aquela zona estava cheia de aldeias e que inevitavelmente haveria civis apanhados no fogo cruzado. O rapazinho atrás dele, sentado na marquesa enquanto recebia um curativo, era a prova disso.
"Aquilo parece muy mal, doutor", insistiu a freira, quase numa súplica. " Tenemos que ir lá."
José deteve-se um instante mais a observar a multidão. Não era possível perceber com exactidão o que se passava, mas não havia dúvidas quanto aos contornos gerais do que sucedera na zona onde nessa tarde vira fumo e escutara detonações. Aquilo era um campo de batalha e só Deus sabia o que para lá ia. Mas, e os civis?
Respirou fundo e rodou os olhos pelo banco de urgências até fixar a atenção no rapaz ferido, a decisão já tomada.
"Eu sei, Lúcia."O cheiro a queimado que enchia o ar de Tete invadira a palhota de Sheila, mas era ainda manhã cedo e a rapariga não lhe prestou grande atenção. Havia combinado com a avó preparar um caril para o almoço e acordara cedo para matar e depenar uma galinha quando ouviu um motor em aproximação, o ronco cortado por uma buzinadela característica.
"Sheila!"
Era a voz do director do hospital a chamá-la. Apanhada de surpresa, a rapariga levantou-se com cuidado, sempre preocupada com a gravidez, e caminhou devagar até à porta. Deparou-se na rua com o Austin do hospital, o jipe verde com enormes cruzes vermelhas na carlinga, e uma nuvem de poeira no seu encalço. José Branco e a irmã Lúcia espreitavam-na dos lugares dianteiros.
"Por aqui, doutor? O que se passa?"
"Anda connosco."
Sheila limpou as mãos sujas ao avental.
"Onde?"
"Vamos ali visitar uns doentes e precisamos de ti."
A enfermeira consultou o relógio, atónita."A esta hora, doutor? São sete da manhã!"
"Nós trabalhamos quando há trabalho", retorquiu o médico. "Vá, anda daí!"
A rapariga lançou um olhar hesitante à avó, que do quintal ouvira a conversa. Aissa fez-lhe sinal com a cabeça a indicar que não fazia mal e que fosse ao seu trabalho. Sheila tirou o avental, vestiu a bata e, despreocupada, enfiou-se no jipe.
Meteram pela estrada de Vila Pery em direcção às colunas de fumo que serpenteavam pelo céu; já não eram negras como na véspera, mas esbranquiçadas. O odor, porém, permanecia; mais forte até, agora que se aproximavam.
A estrada estava estranhamente deserta e o silêncio era absoluto; apenas se escutava o ronco esforçado do jipe.
"O que aconteceu aqui, doutor?", perguntou Sheila com curiosidade. "Que fumo é este?"
O médico não lhe respondeu; era como se nem sequer tivesse escutado a pergunta. A rapariga sentia-se alegre e bem-disposta, tinha enfim tomado decisões sobre o futuro que transportava no ventre e mal podia esperar para contar tudo a Diogo, mas estranhou o silêncio dos dois companheiros de viagem. O doutor Branco, em particular, habitualmente falador e bem-humorado, agarrava-se ao volante com o rosto fechado; ia calado e limitava-se a perscrutar a estrada e o fumo com atenção.
Abeiraram-se do sector da fumarada e viram as colunas de fumo ascenderem para além do arvoredo no lado esquerdo. Chegou a dar a impressão de que iam contornar e deixar esse sector para trás, mas, ao avistar uma picada que se abria à esquerda, José abrandou e meteu o Austin pelo caminho de terra, mergulhando assim no mato. O trilho corria entre os arbustos, os embondeiros e as micaias, varridos pela nuvem de pó vermelho que o jipe levantava no seu rasto.
Em algumas centenas de metros a paisagem alterou-se radicalmente. A primeira coisa anormal que viram foi um embondeiro queimado; depois apareceram duas maçaniqueiras estorricadas.
O jipe rugiu de esforço para ultrapassar uma lomba, acelerou e aterrou com fragor numa pequena clareira. Os três olharam em volta e, entre a poeirada levantada pela viatura, avistaram duas palhotas queimadas.
Aos pés da palha cauterizada e fumegante recortavam-se vultos contorcidos que a Sheila pareceram troncos de árvore derrubados. José e a irmã Lúcia observaram longamente os troncos, como se os estudassem. O médico rodou o volante e retomou a marcha, fazendo o jipe aproximar-se devagar das palhotas, ronronando de mansinho até se imobilizar ao lado dos escombros.
Com horror, Sheila apercebeu-se de que os vultos contorcidos afinal nada tinham a ver com troncos de árvores.
Eram cadáveres carbonizados.
José puxou o travão de mão e apeou-se. Deu dois passos vacilantes, prostrou-se e começou a auscultar os corpos com o estetoscópio, manifestamente em busca de sinais de vida. A irmã Lúcia juntou-se-lhe e, como não tinha estetoscópio, pegou-lhes nos pulsos inertes e sentiu-lhes a pulsação com os dedos. Depois de verificados todos os corpos, o médico e a enfermeira-chefe abanaram a cabeça em silêncio e voltaram para a viatura. Estava explicado o cheiro a vasos laqueados que se sentia desde a véspera; era o odor de carne queimada.
O jipe recomeçou a rolar e seguiu novamente pela picada. Sheila estava estupefacta com o que acabara de observar. Tinha enfim tomado plena consciência de que não circulavam por um local qualquer.
"Doutor!", gemeu, angustiada. "Isto é um campo de batalha! Meu Deus, o senhor trouxe-me para um campo de batalha!"
O médico ignorou-a, continuando a sondar o terreno em redor; a irmã Lúcia fazia o mesmo. Ele olhava para um lado, ela para o outro; era a forma mais eficiente de cobrirem todo o campo de visão.
"Doutor!", insistiu a rapariga. "Porque me trouxe aqui? Não vê que estou grávida? Eu não posso andar por aqui, doutor!"
José Branco voltou a cabeça para trás. Transpirava com abundância e o seu olhar, habitualmente vivo, tornara-se baço.