Minutos mais tarde, José e a irmã Lúcia juntaram-se-lhe. Vinham ambos com as roupas brancas manchadas de sangue e o rosto pesado. O médico inspeccionou os dois sobreviventes que haviam sido transportados para o jipe e assegurou-se de que a mulher queimada se encontrava nas melhores condições possíveis.
"E se houver mais sobreviventes, doutor?", perguntou Lúcia. "Que vamos a bacer?"
José Branco passou as mãos pela testa para limpar o suor, mas no lugar da transpiração deixou um rasto de sangue. Depois instalou-se ao volante e pôs a viatura em marcha.
"Temos de ir buscar ajuda."
O jipe rugiu e arrancou com um coice. O Austin deu meia volta na clareira no meio de uma nuvem de pó fino e meteu com grande estrépito pelo caminho de onde viera. A mulher queimada gemia mais alto a cada solavanco, pelo que o médico, apercebendo-se do sofrimento que lhe estava a causar com a sua condução apressada, abrandou e procurou as partes do trilho menos acidentadas. Sabia, porém, que o tempo era crucial. Precisava de chegar o mais depressa possível a Tete para activar os meios de socorro aos sobreviventes da matança.
Logo que o jipe saiu da picada e meteu pela estrada de Tete, acelerou o mais que pôde.
"Que vamos a dicer quando llegarmos a Tete?", perguntou a irmã Lúcia quase aos gritos, sobrepondo a sua voz ao rugido do jipe agora em aceleração.
"Que estávamos a fazer o nosso trabalho", devolveu José. "Mais nada."
A freira fez um sinal para trás, indicando Sheila.
"No estoy preocupada comigo, pero com ela."
O director do hospital franziu o sobrolho, percebendo o alcance da observação e contrariado por não ter ainda pensado no assunto. Apesar de já ser enfermeira, sabia que Sheila não passava de uma rapariga e de certo modo era a mais vulnerável dos três. Depois de reflectir sobre o caso, José esperou que entrassem numa recta; quando ela apareceu, e apesar de o jipe estar em andamento, voltou-se para trás.
"Sheila, ouve-me com atenção", pediu. "Não fales do que viste com ninguém. Ouviste?"
"Sim, doutor."
O médico endireitou-se, controlando o percurso da viatura, mas voltou-se de novo para trás, gesto que foi repetindo sempre que lhe ocorria uma nova recomendação.
"Se alguém vier ter contigo e perguntar o que vieste aqui fazer, só dizes uma coisa: fui em serviço socorrer feridos numa aldeia que estava a arder. Percebeste?"
A rapariga assentiu com um movimento enfático da cabeça.
"Então repete lá."
Sheila mordeu o lábio e fez um esforço para reconstituir a frase.
"Fui em serviço a uma aldeia a arder para ajudar os feridos."
"Isso!"
Voltou-se e lançou um olhar inquieto para trás, contemplando o fumo que ainda se erguia sobre o arvoredo, branco e ténue.
"E se eles me perguntarem mais coisas, doutor? E se me perguntarem porque fui para uma zona de guerra sem autorização?"
"Repetes sempre a mesma coisa", sentenciou José, erguendo o dedo. "Vieste comigo porque eu te ordenei e porque tu és enfermeira e o nosso trabalho não conhece fronteiras. Entendeste?"
"E se quiserem saber porque estava a aldeia a arder?"
"Dizes que não sabes. A aldeia estava a arder, havia feridos e tu foste fazer o teu trabalho. Mais nada. O nosso trabalho não conhece fronteiras."
Momentos mais tarde o jipe entrou em Tete. O médico abrandou um pouco, adoptando uma velocidade vagamente tolerável em cidade, e subiu até ao hospital. Logo que a viatura invadiu a pequena rotunda diante do edifício pôs-se a buzinar com estrépito para chamar a atenção dos funcionários. Surgiram de imediato dois enfermeiros que foram auxiliar os sobreviventes a sair da viatura. Sheila ajudou-os a transportar a mulher e a criança e, num relance, apenas registou a imagem dos vultos níveos de José e da irmã Lúcia a desaparecerem, apressados, num corredor do hospital.
Não o podia saber nesse instante, mas guardaria para sempre aquela imagem na sua memória.
Ela tornar-se-ia importante, não porque José Branco e a irmã Lúcia estivessem a fazer algo de extraordinário, mas por uma razão muito mais importante.
E que foi a última vez que os viu.O ambiente no hospital de Tete fervilhava numa agitação mais caótica do que acontecia quando os Alouettes aterravam para descarregar feridos. As urgências pareciam entupidas de gente e, ao entrar no edifício, Diogo teve o pressentimento distinto de que, além da natural aflição dos pacientes em sofrimento, um sentimento diferente intoxicava o ar. Não sabia como defini- lo; era uma qualidade incorpórea, uma sensação imaterial que tudo perpassava e cuja natureza lhe escapava. Na busca dessa impressão indefinida, cravou os olhos na face de uma enfermeira e surpreendeu-lhe um esgar amedrontado enquanto tratava de uma mulher queimada.
Foi nesse preciso instante que entendeu o que pressentia.
Medo. Havia medo naquele hospital. O pessoal tratava os feridos num silêncio sepulcral, os trejeitos a denunciarem temor, os olhares a recearem o primeiro intruso que cruzasse as urgências.
O ar cheirava a medo, envenenado pela estranha e sinistra calma de uma ameaça palpável, mas difusa e traiçoeira. O visitante levou algum tempo a captar a origem desse medo. As enfermeiras e os médicos, começou por concluir, tinhamreceio dos feridos. A constatação surpreendeu-o. Como era possível que temessem os feridos? Que ameaça poderiam eles representar?
A perplexidade desencadeada por essa constatação levou-o a corrigir o raciocínio e a dar o passo seguinte. Não, não era dos feridos que tinham verdadeiramente medo. O terror que envenenava aquele hospital devia-se a uma convicção generalizada de que todos estavam a cometer uma perigosa infracção. O pessoal não tinha medo dos feridos; tinha era medo de os tratar.
Abandonou as urgências e esquadrinhou as enfermarias aos tropeções. Olhou para o próprio corpo, surpreendido, e apercebeu-se de que caminhava como um ébrio; sentia-se na verdade atordoado com a vertigem dos acontecimentos. Havia passado uma noite inteira sem dormir, acossado pelas imagens do que presenciara na aldeia, e só nessa tarde obtivera licença para abandonar o quartel do Mazoi e ir à cidade. Sentia os nervos embotados e experimentava uma sensação trôpega de irrealidade, como se tudo o que sucedia à sua volta fosse um sonho; até o caos que encontrou no hospital lhe parecia fantasia, uma encenação, e teve de fazer um esforço para não se dissociar da realidade que vivia.
"Diogo?!"
A voz de Sheila surgiu, também ela, envolta naquela estranha neblina de devaneio e realidade.
Voltou-se e, fixando-a no meio da névoa que lhe obscurecia a visão, lobrigou-a na sua bata de enfermeira. A bata tinha algo de estranho; era branca mas estava manchada de vermelho-vivo no peito e nas mangas. Sangue. A imagem era bizarra e o soldado voltou a perguntar a si mesmo se não estaria a sonhar com tudo aquilo.
A rapariga mudava um penso a uma figura envolta em tanto gesso que não se percebia se era homem ou mulher, mas passou a tarefa a uma outra enfermeira e veio a correr, anichando-se nos braços protectores do namorado.
"Diogo!", soprou, apertando-o com força. "Tenho tanto medo, tanto medo!..."
O furriel estreitou-a contra o peito, aliviado com a sensação de realidade que o contacto humano lhe suscitava, como se fosse a prova final de que nada daquilo era imaginação. Afagou-lhe o cabelo e colou-lhe os lábios aos ouvidos.
"Pronto", sussurrou. "Está tudo bem. Eu estou aqui. Não há razão para teres medo, eu estou aqui!..."
Sheila soluçava-lhe no ombro, o corpo a estremecer de pavor. O namorado deixou-a chorar e acariciou-lhe o rosto molhado enquanto aguardava que ela acalmasse. Com um movimento suave para não desfazer o abraço, puxou-a e levou-a pelo corredor até saírem do edifício pela porta traseira.