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O ar no exterior, embora sempre quente, pareceu-lhes estranhamente retemperador. O vento tépido e seco ergueu-se rasteiro, agitando o tapete vegetal que decorava o pátio; as folhas saracotearam como borboletas nervosas, esvoaçando em movimentos oscilantes até voltarem ao chão.

Diogo ajudou-a a sentar-se nas escadas do pátio e acomodou- se ao lado dela, sempre a enlaçá-

la num abraço protector.

"Não imaginas o que aconteceu", disse Sheila mal recobrou o controlo das emoções. "Tu não imaginas!..."

"Estás a referir-te a estes feridos no hospital?"

A rapariga ergueu a cabeça com um movimento brusco e fitou-o nos olhos, como se assim lhe pudesse transmitir todo o horror que a estrangulava.

"Estão a chegar desde anteontem à noite", revelou. "Contam coisas horríveis, não imaginas."

Consumido pela culpa, Diogo teve dificuldade em suster-lhe o olhar. Engoliu em seco antes de fazer um gesto com a cabeça para a encorajar a prosseguir.

"O que dizem eles?"

"Os primeiros a chegar vieram de uma aldeia chamada Chawola. Contaram que a tropa obrigou toda a gente a bater palmas para se despedir da vida e depois começou a disparar." Fez uma pausa para limpar o rosto e fungar. "Depois juntaram os corpos, puseram capim sobre eles e deitaram-lhes fogo. Algumas pessoas atiradas para essa fogueira ainda estavam vivas. Viram a tropa voltar costas para incendiar as palhotas e violar algumas raparigas. Aproveitaram a ocasião e saíram da fogueira. Fugiram da aldeia e vieram aqui para o hospital, nem sei como."

Diogo respirou fundo. Não havia presenciado o que sucedera em Chawola, mas sabia agora que já não seria possível conter as informações. Isso deixava-o preocupado, mas, estranhamente, também aliviado. Acreditava que uma coisa daquela magnitude não poderia permanecer silenciada; tal já não era possível, nem isso seria justo.

"Pronto", murmurou, tentando reconfortá-la. "Acalma-te. Estas pessoas precisam de ti e tu ao menos podes ajudá-las."

"lá. Mas tenho medo."

"Medo de quê? Não há razão para teres medo. Não fizeste nada de mal, não precisas de te preocupar."

Ela abanou a cabeça, infinitamente triste.

"Estás enganado, Diogo. Há maningue razões para me sentir preocupada."

A declaração surpreendeu o namorado.

"Tu? Porquê?"

Sheila ergueu os olhos marejados de lágrimas; soluçava e o queixo tremia-lhe.

"Eu estive lá."

Diogo fez uma expressão interrogativa.

"Lá onde?"

"Nas aldeias onde tudo aconteceu. Eu estive lá."

O rosto do namorado permaneceu rígido durante dois longos segundos, enquanto a mente processava a inacreditável informação que acabara de escutar.

"O quê?"

"Fui com o teu tio e a irmã Lúcia." Recomeçou a chorar. "Foi horrível, meu Deus! Horrível!"

A revelação deixou-o atónito. A imagem da aldeia como a deixara ficara-lhe cravada na mente, com as palhotas a arder e os corpos carbonizados no interior, uns inteiros e outros despedaçados.

Sheila vira aquilo?

"Estiveste lá?"

Incapaz já de falar, a namorada fez que sim com a cabeça.

"O meu tio também?"

O choro de Sheila tornara-se descontrolado; era como se até ali se tivesse contido e agora o dique se quebrasse, libertando a torrente. Chorava com abandono, descarregando em soluços profundos e sucessivos os fantasmas que a assombravam desde que voltara da aldeia e começara a digerir o que havia visto.

"O meu tio também?", insistiu Diogo.

A rapariga, dobrando-se sobre o ventre como se tivesse todo o corpo dorido, assentiu de novo.

"Ele desapareceu."

"O quê?"

Sheila fez um esforço e dominou o choro apenas o tempo suficiente para conseguir completar a informação.

"A PIDE levou-o."

Saiu do hospital e percorreu apressadamente os quinhentos metros até chegar à casa do tio, na colina sobranceira ao Zambeze. Entrou pelas traseiras e encontrou Mimicas agarrada ao telefone e em estado de absoluta desorientação; tinha um cigarro aceso entre os dedos e deixara dezenas de beatas esmagadas em vários cinzeiros de pau-preto e dois maços de LM amarfanhados sobre a mesa da sala de jantar.

"Ai, Diogo!", exclamou Mimicas quando o viu, agarrando-se a ele em lágrimas. "Ainda bem que vieste! Cheguei agora da Beira. Vim logo que me deram a notícia sobre o... o Zé."

"Que notícia?"

"Não sabes? Ele desapareceu."

O furriel ajudou-a a sentar-se no sofá e tentou tranquilizá-la.

"Tenha calma, tia", disse-lhe na voz mais reconfortante de que era capaz. "Que aconteceu?"

Mímicas tinha os olhos pousados no telefone negro e abanava a cabeça sem cessar.

"Ninguém fala comigo", disse ela. "Ninguém, ninguém. Eu tinha tantas amigas, tantas, tantas!...

E ele também. Mas agora... agora ninguém fala comigo. E como se não me coisassem."

"O que aconteceu?"

"Dizem que não estão, dizem que não podem...", murmurou, sempre no mesmo registo. "A Marília até me desligou o telefone na cara. Acreditas nisso? Quando aqui cheguei, a primeira coisa que fiz foi ligar-lhe para saber do Zé e ela desligou-me o telefone na cara! Como é possível? Nós dávamo-nos tão bem, tão bem. E agora... agora ninguém me conhece!" A cabeça não parava de abanar, como se se negasse a aceitar a realidade. "Não compreendo isto, não compreendo!..."

Diogo segurou-a pelos ombros e abanou-a com força, tentando quebrar aquele transe.

"Tia!", chamou, a voz a sobrepor-se à ladainha dela. "Tia! Está-me a ouvir?"

Mímicas interrompeu a litania e olhou-o, surpreendida; parecia ter voltado a si.

"O que é?"

Diogo observou-a com atenção, certificando-se de que ela havia recuperado o controlo de si própria, mesmo que por apenas uns instantes.

"Conte-me o que aconteceu."

A tia baixou os olhos para o cigarro que lhe dançava entre os dedos amarelados de inquietação.

"Eu não estava cá, estava na Beira", disse num tom nervoso, quase culpado. "Mas o Ernesto contou-me que há duas noites o Zé foi chamado ao hospital. Tinham chegado uns coisos... uns feridos. Parece que ele voltou para casa com ar muito preocupado, mas não contou nada ao Ernesto, claro. Acordou no dia seguinte aí pelas seis da manhã e saiu logo a seguir. A Sheila disseme que ele e a irmã Lúcia foram buscá-la para visitar as aldeias de onde tinham vindo esses feridos.

Quando voltaram a Tete, o inspector Silva, da PIDE, foi ao hospital e levou-o. Desde então que não dá notícias. O Ernesto ficou muito nervoso e telefonou-me lá para a Beira. Eu apanhei o primeiro avião. Já liguei ao inspector, já liguei à mulher dele... ninguém me diz nada de nada. Não sei se o Zé está vivo, se está morto, o que fizeram dele. Não sei nada de nada, a não ser que o levaram."

Lançou um novo olhar angustiado para o telefone. "Estou farta de ligar a toda a gente e ninguém quer falar comigo. Pessoas que eram minhas amigas, Diogo!... Ninguém quer falar comigo."

O furriel respirou fundo.

"Estou a perceber", disse. Coçou a cabeça, pensativo. "Vou ver o que posso fazer."

Mimicas desviou a atenção do telefone e fitou-o com uma expressão incrédula.

"Tu, Diogo? O que podes tu fazer?" Pousou a mão no peito. "Olha para mim. Eu sou a mulher do director do hospital e do Serviço Médico Aéreo. Eu e o teu tio somos visitas de casa do inspector Silva, somos amigos do bispo, somos amigos do governador... e a mim ninguém diz o que quer que seja! O que podes tu fazer?"