Diogo devolveu-lhe o olhar. Sim, pensou; o que poderia ele fazer? Não passava de um furriel miliciano destacado para um quartel no meio do mato e transferido à má fila para uma companhia de comandos, a qual aliás estava por detrás de toda aquela confusão. Que iria ele fazer? Que cordelinhos poderia mexer? Apresentaria queixa a quem? A Angelino?
"Tem razão", murmurou por fim, rendendo-se à sua própria impotência. "Só nos resta aguardar."
A atenção de Mimicas regressou ao telefone pousado na mesinha ao lado do sofá.
"Eu não vou esperar quieta", disse com resolução, resvalando no sofá para se aproximar do telefone. "Podem fugir de mim, podem dizer que não estão, podem até fingir que não me conhecem, mas uma coisa te garanto: não os vou largar."
Vendo a tia agarrar-se ao aparelho, Diogo levantou-se e foi à cozinha. Podia ser que um chá a ajudasse. Quando atravessava a sala de jantar, porém, apercebeu-se de uma sombra recortada na luz da porta para o pátio traseiro e olhou naquela direcção. Um vulto perfilou-se diante da claridade, os cabelos envoltos num halo refulgente, e abriu a porta; as feições do rosto, escurecidas pelo contraste com a luz exterior, tornaram- se perceptíveis.
"Sheila!", exclamou, apanhado de surpresa. "O que estás aqui a fazer?"
A namorada deu dois passos hesitantes pela sala, lançando olhares amedrontados em todas as direcções.
"O doutor Branco? Já apareceu?"
Diogo fez um gesto negativo com a cabeça e aproximou-se dela, mas deteve-se quando a viu recuar um passo, quase como se a rapariga tivesse receio dele.
"O que foi?"
Sheila observava-o de um modo estranho; parecia uma impala a vigiar um predador que rondava a manada.
"Vim aqui porque... porque apareceu lá no hospital um pára- quedista para visitar um amigo que está lá internado." Falou muito devagar e fez uma pausa para sublinhar a importância do que dizia. "Eu estava a mudar um penso do amigo e ouvi esse pára-quedista dizer que a matança nas aldeias foi coisa dos comandos."
A rapariga fez mais uma pausa, desta feita para estudar a reacção do namorado. Diogo sentiu as gotas de transpiração brotarem-lhe do couro cabeludo e percebeu que chegara o momento da verdade. Não se sentia preparado para ele, queria mesmo adiá-lo, mas não havia fuga: o momento impusera-se à sua frente.
"Sim..."
O olhar de Sheila tornara-se de tal modo intenso que parecia soltar fagulhas.
"Ele falou na 6.a Companhia de Comandos."
Diogo baixou a cabeça em sinal de rendição, não se atrevendo sequer a encará-la.
"É verdade."
A confirmação foi dada num fio de voz quase imperceptível, tão baixo que parecia soletrada pela brisa, e, porém, insuportavelmente ruidosa. Fez-se o silêncio mais absoluto naquela sala.
"Tu estiveste lá?"
As lágrimas escorriam pela face do namorado, em ziguezague, como gotas de chuva quente.
Abriu a boca e tentou falar, mas a voz ficou estrangulada na garganta e apenas emitiu o que soou como um grunhido. Pigarreou e levantou os olhos molhados, reunindo toda a coragem que lhe restava para, por fim, a enfrentar.
"Estive."
Sheila susteve o olhar durante um longo segundo. Depois voltou-se e, ganhando vigor, carregou pela porta. Ao vê-la percorrer a varanda e começar a descer as escadas para o pátio traseiro, Diogo saiu da letargia em que parecia mergulhado e largou no encalço dela.
"Sheila!", chamou. "Espera! Espera!"
A rapariga percorria já o pátio e metia pelo carreiro para o hospital.
"Deixa-me!", disse ela sem se virar, percorrendo o carreiro com passo decidido. "Deixa-me em paz!"
Mas Diogo corria atrás dela.
"Espera!", implorou. "Deixa-me explicar!"
Sheila estacou e voltou-se com brusquidão, a fúria a incendiar-lhe o rosto com tanta intensidade que o furriel se deteve também. Ficou pregado à sombra da maçaniqueira do pátio traseiro e não se atreveu a dar mais qualquer passo, intimidado com a raiva que parecia cegá-la.
"Explicar?", gritou ela, fora de si. "Explicar?"
"Iá", insistiu ele, submisso mas convicto. "Há uma explicação."
A rapariga apontou para a casa. Diogo voltou a cabeça para trás e avistou Mimicas plantada na varanda, o espanto desenhado no rosto enquanto observava a cena.
"Explica-lhe a ela!"
Com um novo movimento brusco, Sheila virou-lhe as costas e retomou o caminho, levada pela fúria e pelo vento quente que descia pelo Zambeze e sufocava Tete.O ambiente na repartição de Tete da DGS era de embaraço absoluto perante a inesperada e desconfortável situação que se criara.
Os funcionários não sabiam se deviam bater os relatórios à máquina ou conversar com o detido que todos fingiam não estar detido.
Ninguém, a começar pelo próprio inspector Aniceto Silva, tivera coragem de encerrar José Branco numa cela ou algemá-lo sequer. Em vez disso sentaram-no numa cadeira em plena secretaria, como se ele não passasse de um visitante ocasional que ali fora apanhar o fresco das ventoinhas para se refugiar do calor sufocante da rua. A verdade é que José era o médico de toda a gente que trabalhava naqueles escritórios, e como podiam eles prender a pessoa que ainda há uns meses salvara a filha do paludismo ou resgatara a mulher da doença do sono?
Ofereceram-lhe capilé e umas bolachas, além de muitos sorrisos e uma ou outra palmadinha nas costas por entre murmúrios de "está tudo bem, não se preocupe" ou "isto é só um mal- entendido que o chefe já vai desfazer", como se o regresso à normalidade dependesse da mera vontade de quem ali trabalhava. Mas José Branco sabia que não havia mal-entendido nenhum e que aquela questão não se resolveria só com palmadinhas e boa vontade.
Como a confirmar essa impressão, o gigantesco Francisco aproximou-se com ar de poucos amigos, era talvez a única pessoa ali que não parecia incomodada com a situação, e fez-lhe sinal de que se levantasse.
"Venha daí ao chefe."
O inspector Silva estava sentado à secretária e nem cumprimentou o médico quando o viu entrar no gabinete. Limitou-se a fazer um sinal a Francisco de que os deixassem a sós. Quando a porta se fechou, indicou a José que se acomodasse na cadeira em frente.
"Doutor Branco, quantas vezes lhe pedi que não se metesse na política?", foi a primeira pergunta que atirou. "Quantas, doutor?"
"Desculpe, mas eu não me meti em política."
O chefe distrital da DGS inclinou a cabeça num gesto céptico, como um adulto a mostrar a uma criança que não acreditava nas patranhas que ela lhe contava.
"Ó doutor... francamente!"
"Não sei porque está a falar assim. Viu-me por acaso envolvido em alguma actividade política?"
Aniceto Silva assentou os cotovelos na secretária e enlaçou as duas mãos, apoiando o queixo sobre os dedos enleados.
"Há anos que o doutor não faz outra coisa."
"Como pode dizer uma coisa dessas? Alguma vez me ouviu uma palavra que fosse sobre política?"
"Os seus actos falaram por si", disse, apontando-lhe o indicador. "Pensa que não o tínhamos debaixo de olho? Até sabemos como o doutor se comporta na cama!"
O médico esboçou uma expressão de perplexidade, estranhando o despropósito da referência.
"Na cama?"
O inspector soltou um sorriso forçado.
"A nossa bifa é uma boa queca, não é?"
A perturbação do director do hospital acentuou-se ao escutar estas palavras. Bifa? José abriu a boca e tentou falar, mas o choque fora demasiado grande e por momentos não conseguiu proferir uma palavra que fosse. Teria ouvido bem?
"O... o que quer dizer com isso?"
"Ah! A palavra bifa parece-lhe familiar, estou a ver. Dáne tusa?"