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"Eu tentei", exclamou com uma expressão resignada. "Mas se é essa a sua posição irá discuti-la no sítio para onde terei de o mandar de imediato."Se a potência do motor correspondesse a metade do barulho que fazia, a Farnel Foguete de fabrico nacional seria um bólide imparável. Mas Diogo tinha consciência de que a motorizada que lhe trepidava nas mãos, apesar de estupidamente ruidosa, não era máquina de corrida; nem aliás precisava que o fosse, uma vez que ia em descida e só a usava para se deslocar.

Logo que nessa manhã havia chegado a Tete, o furriel fora alugar a motorizada ao Zambézia Comercial e dera um salto ao hospital para saber de Sheila, de quem não tinha notícias havia quase três semanas, tantas quantas passara no mato à espera da primeira oportunidade para vir a Tete.

Havia cumprido no Mazoi o final da sua comissão na 6.a Companhia de Comandos e, logo no primeiro dia de 1973, regressara ao Chioco para reintegrar as fileiras do BART. Envolvido numa série de procedimentos relacionados com a transferência e depois com a falta de pessoal no Chioco por causa das licenças de Natal e Ano Novo, durante todo esse tempo não havia sido autorizado a deslocar-se à cidade. As múltiplas tentativas que fizera à distância para localizar a namorada embateram num silêncio angustiante; nenhuma das inúmeras cartas que lhe enviou teve qualquer resposta.

O problema é que Sheila não era a única pessoa que desaparecera. Havia três semanas que ninguém sabia do tio e no hospital as enfermeiras tinham mesmo medo de falar do assunto. Fora visitar a tia Mimicas e dera com ela desesperada a preparar as malas para ir a Lourenço Marques tentar falar com o governador- geral, projecto que todos sabiam estar destinado ao fracasso.

O ar que lhe fustigava a face enquanto se anichava na moto semeou nele a dúvida. Seria o vento tão forte que fizesse voar o que levava nos bolsos? Deitou a mão ao bolso direito das calças e constatou que estava vazio. Alarmado, pôs a mão no outro bolso. Sentiu a textura do papel e exalou um suspiro aliviado; não o perdera. Era reconfortante saber que pelo menos trazia ali a informação que poria fim a quase três semanas de ansiedade em relação a Sheila. Fora difícil, mas após grande insistência o pessoal do hospital lá se compadecera e acabara mesmo por lhe dar a morada de casa da namorada.

A Farnel Foguete chegou ao cruzamento do Hotel Zambeze. Virou à direita para o posto do calhambeque e Diogo apercebeu- se de uma coluna de Berliets estacionada no sentido oposto com uma companhia de boinas vermelhas na carga a beber cerveja. Deteve-se nos rostos e reconheceu os homens da 6.a Companhia de Comandos; tinham um ar fatigado.

Hesitou, indeciso em relação ao que fazer. Deveria falar-lhes ou seria melhor fazer de conta que não os vira? A lembrança da grande matança na aldeia era demasiado dolorosa e inclinou-o para esta última decisão. Carregou na embraiagem e, com um movimento do pé, engatou a primeira.

"Então, grande campeão? Por aqui?"

Ainda pensou em fingir que não escutara a voz de Angelino e arrancar, mas uma ligeira hesitação deitou tudo a perder. O comandante dos comandos apareceu-lhe ao lado com uma garrafa de Laurentina preta na mão e a oportunidade esfumou-se.

"Olá, Angelino", cumprimentou Diogo sem sorrir. "Não é um pouco cedo para começar a beber?"

O boina vermelha contemplou a garrafa.

"Bebo para esquecer."

"Esquecer o quê? As mulheres e as crianças que mataste?"

"Também."

Uma forte essência de after-sbave atingiu Diogo com a força de uma lufada de vento. O furriel fez uma careta e desviou o rosto, tentando fintar o odor forte.

"Porra!", exclamou Diogo. "Tresandas a Old Spice, pá! Despejaste um frasco na cabeça ou quê?"

Angelino esboçou uma expressão agoniada e colou o nariz ao lenço verde.

"Ainda cheiro muito?" Estalou a língua, contrariado. "Que merda!..."

"O que aconteceu?"

O comando revirou os olhos, engoliu mais um trago de Laurentina e depois arrotou.

"Ah, pá! Nem me fales, caraças!" Novo arroto. "Sabes de onde venho agora?"

"Do Mazoi?"

Angelino abanou a cabeça.

"De Wiriyamu, porra!"

"O quê?", admirou-se Diogo. "Da aldeia onde?..."

"Essa mesmo."

"O que foste lá fazer?"

O comandante dos comandos voltou a colar o gargalo da garrafa aos lábios e, içando-a bem alta, engoliu o que restava da cerveja. Depois limpou a boca à manga da camisa e fez uma expressão de enjoo que culminou em mais um arroto.

"Fui outra vez chamado à ZOT, pá", disse. "Parece que houve um médico que foi à aldeia e viu aquela merda toda que para lá fizemos com os pides. A informação transpirou para os padres espanhóis e já há uns zunzuns a circular sobre o assunto. Por causa do filho da puta desse médico, o GPZ vai amanhã enviar um heli para sobrevoar a aldeia com uma equipa da delegação de saúde."

Até aí a sustentar a conversa apenas por delicadeza, estas referências despertaram a atenção de Diogo.

"Disseram-te onde está esse médico?"

"Com a PIDE, acho eu. Então, por causa do heli que o GPZ vai..."

"A PIDE aqui em Tete?"

Angelino franziu as sobrancelhas, admirado e irritado com a insistência.

"Sei lá!", exclamou com um encolher de ombros. "Ouvi dizer na ZOT que o gajo foi despachado para Nampula, ou o raio que o parta. Mas que interessa isso?"

A informação fez Diogo estreitar inadvertidamente os olhos. Nampula? Isso queria dizer que o tio fora enviado para o quartel- general do general Kaúlza de Arriaga. Mas o que lhe quereriam em Nampula? Era de qualquer modo uma informação preciosa, que teria de comunicar à tia Mimicas antes de ela partir para Lourenço Marques; talvez pudessem fazer alguma coisa para chegar até ao tio. Preocupado de momento em manter o seu interlocutor na ignorância quanto à sua ligação familiar com o médico indiscreto, o furriel esboçou um gesto de indiferença.

"Continua."

"Como te estava a dizer, por causa do voo amanhã do heli do GPZ recebi ordens para voltar à aldeia e limpar aquela merda toda."

"Mas isso já foi feito", admirou-se Diogo. "Maior limpeza do que aquela parece-me impossível..."

"Desta vez limpar significa enterrar os mortos e pôr tudo num brinco", esclareceu Angelino. "De modo que eu e os meus homens tivemos de lá voltar esta manhã, vinte dias depois da operação."

Fez um gesto vago para cima. "Estás-me a topar este calor? Agora imagina o cheiro de centenas de corpos a apodrecerem durante vinte dias com esta temperatura." Revirou os olhos. "Puf, era um fedor que não se podia!" Tocou no lenço verde. "Tive de encharcar o lenço de after-shave e tapar a cara com ele para aguentar o cheirete. E os corpos eram um nojo... Estavam inchados e com nuvens de moscas à volta, vê lá tu! Abrimos uma vala e atirámos para lá toda aquela porcaria, mas não foi fácil, pá. Nem imaginas a sorte que tiveste em já não estares connosco. Olha, sabes o que me aconteceu? Pus-me a puxar um cadáver e o braço do tipo desprendeu-se-lhe do tronco e fiquei com ele na mão." Soltou um risinho nervoso. "Estás-me a ver esta merda? Fiquei com a porra do braço na mão! Agh, que nojo!" Mirou a garrafa vazia que ainda agarrava. "Venho de lá agora e já emborquei duas Laurentinas para ver se descontraio."

O relato deixou Diogo agoniado. Sentiu uma necessidade imperiosa de sair dali quanto antes, mas percebeu que, para o poder fazer, teria primeiro de mudar de assunto. Desviou por isso os olhos para a coluna de Berliets estacionada ao longo da rua.