"Ó coiso!", chamou ela inesperadamente ao terceiro domingo, cravando os olhos no seu perseguidor. "Estás a seguir-me ou quê?"
Fora apanhado. O pior era que a interpelação lhe soara a acusação e José, enfim desmascarado, vacilou, indeciso entre responder e fugir. A cautela e um certo atrevimento acabaram por vencer.
"Não", devolveu, fechando o rosto como se se preparasse para o confronto. "Porquê?"
"É que já não é a primeira vez que te vejo a coisar-me no regresso da missa. És o meu vizinho, não és?"
Tinha uma voz de cristal, límpida e delicada, e um sorriso aberto que lhe coloria a palidez láctea do rosto.
"Acho que sim."
"Bem me parecia. Sou a Mimicas."
"Micas?"
A rapariga soltou uma gargalhada sonora e franca.
"Na verdade o meu nome é Mariana, mas desde pequenina, mesmo em África, que todos me coisam por Mimicas."
"Vieste de África?"
"Sim, nasci lá."
A referência às origens da vizinha despertou a curiosidade de José, sempre fascinado pelas coisas exóticas. Examinou a pele da rapariga com cuidado; era nívea, com pelinhos aloirados reluzentes. Tinha lábios finos e os cabelos, não sendo loiros, ostentavam um brilho luzidio que ao sol fazia lembrar a aura de um anjo.
Recuou um passo e contemplou-a, agora com cepticismo, comparando o que via diante dele com as imagens que enchiam os livros da escola e as revistas que consultara lá em casa e ainda com a lembrança do que observara anos antes na passagem memorável pelos pavilhões coloniais da Exposição do Mundo Português.
"Se nasceste em África", perguntou num tom desconfiado, "porque não és preta?"
Como se não bastasse a aventura dos domingos, a tudo se sobrepunha o magno imbróglio da catequese. O pequeno vivia todas as semanas um dilema permanente: tinha de confessar pecados.
Poderá parecer coisa de somenos, mas para José tratava-se de uma questão soberanamente grave, tão complexa que lhe chegava a roubar o sono.
É verdade que no sábado à noite se deitava animado pela alegria de saber que no dia seguinte ia ver Mimicas e talvez conversar com ela no caminho até casa. Achava-a cativante, com o seu divertido linguajar cheio de "coisos" e de "coisares", fruto da sua maneira distraída de falar, e sobretudo com as fascinantes histórias de África. A rapariga contou-lhe que havia nascido no Mindelo, algures no meio do arquipélago de Cabo Verde. O pai morrera numa deslocação à Guiné, vítima de uma doença cujo nome não conseguiu fixar mas que era transmitida por mosquitos, pormenor que não esquecera, e a mãe mandara-a para os tios de Penafiel enquanto reorganizava a sua vida.
"Ele morreu porque não havia médicos no sítio para onde foi", explicou ela.
"Não há médicos na terra dos pretos?"
"Não para onde ele foi."
José ficou a matutar no assunto, impressionado com o que escutara.
"Quando eu for grande vou resolver isso!"
Os passeios com Mimicas revelaram-se apaixonantes. O rapaz metralhava-a com as mais diversas perguntas relacionadas com a vida em África. As pessoas iam à igreja? Fazia-se sport em stadiums? Havia banacau? Os pretos comiam gente? Alguma vez um leão lhe entrara em casa? O
Tarzan existia mesmo?
O fascínio dos domingos era, no entanto, por vezes antecedido pela angústia de certas quintas-feiras. Acontece que a comunhão decorria na primeira sexta-feira de cada mês, pelo que os rapazes eram forçados a confessar-se na véspera. O embaraçoso engulho é que, a maior parte das vezes, não lhe ocorria nenhum pecado que pudesse apresentar com orgulho ao confessor.
Num dia de maior desespero, angustiado pela vergonha que seria apresentar-se diante do pároco sem nada a maculá-lo, aproximou-se do irmão mais velho, que permanecia de joelhos voltados para o altar, e murmurou-lhe ao ouvido:
"António, tenho vergonha de ir lá."
"Ir onde?"
José fez um gesto com a cabeça, indicando o cubículo de madeira à esquerda.
"Ao confessionário."
"Porquê? Qual é o problema?"
O pequeno encolheu os ombros.
"Não tenho pecados nenhuns."
"Não tens?"
"Não."
"Nada de nada?"
"Nada."
O irmão mais velho ponderou o problema. Assim à primeira vista a coisa parecia séria, mas era possível que ao pequerrucho lhe estivesse a falhar uma qualquer escapadela.
"Olha lá, não disseste nenhuma peta?"
"Não."
"Nem desobedeceste à mãe?"
"Uh... não." Hesitou. "Espera, noutro dia o pai mandou-me ir abrir a porta e eu demorei um bocadinho, assim de propósito." Arregalou os olhos, esperançado. "Achas que isso é pecado?"
António reflectiu um instante, mas acabou por fazer uma careta e abanar a cabeça.
"Não, não me parece." Passou a mão pelo cabelo. "Não fizeste mais nada?"
"Não, nada."
"Então diz isso ao padre Jacinto."
"Digo o quê?"
"Que não tens nenhuns pecados para confessar.-"
O mais novo baixou os olhos e abanou a cabeça.
"Ele não s'acredita."
"Não s'acredita?"
"Não. Da última vez disse-lhe isso e ele respondeu-me que era feio mentir."
António esboçou um trejeito de boca, como quem não tem resposta para tal argumento.
"Ah, bom..."
José permaneceu um instante calado, fitando o altar e o padre prestes a terminar a homilia.
Após uma hesitação, voltou a aproximar a boca do ouvido direito do irmão.
"António."
"Sim?"
"Empresta-me os teus pecados."
O pesadelo do confessionário terminou em breve, quando os pecados, aqueles pecados genuínos e praticados com deliciosa intenção, começaram por fim a surgir.
É certo que o primeiro grande pecado não foi lá muito intencional, ou pelo menos planeado.
Joana fazia anos a 9 de Abril e o capitão Branco deu ao filho mais novo um punhado de tostões para comprar uns bolinhos e ir oferecê-los à tia. Com aquele dinheiro na mão, José desceu à rua no final da manhã e adquiriu na Pastelaria Brasil meia dúzia de bolinhos de coco, os seus favoritos; de pacote apertado ao peito, foi a saltitar pelo passeio em direcção à casa do juiz Brandão, situada na outra ponta da cidade. Mas aqueles tempos, difíceis como eram, revelavam-se particularmente cruéis para quem tanto gostava de doçuras; o racionamento do açúcar tornava geralmente problemático o acesso às delícias das confeitarias e ter aquele pacote na mão, mais do que uma simples tentação, constituía um suplício infernal.
Não admirou por isso que, volvidos alguns passos, o pequeno começasse a espreitar o embrulho. Primeiro lançou-lhe olhares furtivos, meras espiadelas fugidias e tímidas, mas em breve os esgares tornaram-se abertos, directos, lascivos até. No fim de contas, pensou para si mesmo, meia dúzia de bolos era muita coisa! Certamente a tia não ia comer aquilo tudo. O que lhe importaria a ela que fossem seis ou cinco bolos? Provavelmente nem notaria a diferença.
O raciocínio instalou-se devagar, insidioso, parecia a sombra leve de uma nuvem que se anuncia breve, mas que logo mancha todo o céu; tal como ela, o desejo tudo invadiu e tornou-se gula desenfreada. Depressa a glutonaria se estendeu às mãos e, acto contínuo, os dedos irrequietos puseram-se a desfolhar o embrulho, primeiro a medo, depois com impaciência. Escancarou o pacote com inesperada brutalidade e, tremendo de prazer antecipado, furtou um bolo e devorou-o num impulso voraz, ávido, consumido por uma volúpia já sôfrega e descontrolada.
"Aaaaaah."
O prazer foi imenso.
Mas curto.
Quando a nuvem do desejo incontrolável passou e a chama do êxtase se extinguiu, José caiu em si. Deu-se conta do que fizera e olhou em redor, assustado, os olhos muito arregalados, o coração aos pulos; sentia-se culpado e fechou atabalhoadamente o embrulho. Acelerou o passo, os olhos fixos no chão, incapazes de se erguerem; eram olhos de transgressor, de prevaricador, de culpado.