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"Onde vão vocês agora?"

"De férias para a Ilha de Moçambique. Sol, praia, camarões... O Kaúlza quer-nos fora de Tete o mais depressa possível. Por mim, maravilha!"

Reequilibrando-se na motorizada, Diogo engatou a primeira, fez força com o pedal para testar o motor, forçou um sorriso, ergueu a mão, acenou.

"Então boas férias!"

E arrancou, afastando-se no meio de grande estrépito e da nuvem de fumo azulado que a Farnel Foguete ia deixando no seu rasto.

As ruas esburacadas dos subúrbios obrigaram Diogo a abrandar. Tete nunca fora famosa pela qualidade das suas artérias, mas aquela faixa poeirenta tinha tantos buracos que lhe deu a impressão de estar a fazer um motocross entre as crateras da Lua. Teve assim de ziguezaguear em torno das covas, como se a Farnel Foguete estivesse embriagada, e progrediu a um ritmo tão lento que era acompanhado pelas pessoas a pé.

Com uma pontada de nostalgia em pleno peito, reconheceu de repente a picada que saía da rua.

Vacilou um instante, tempo apenas para se refazer das emoções que aquele lugar lhe suscitava, e enfiou pelo trilho. Fora ali, escondidos atrás de um arbusto e iluminados pelo hálito suave das estrelas, que ele e Sheila tinham feito amor pela primeira vez. Buscou com o olhar o recanto onde isso acontecera, mas à luz do dia era tão diferente que desistiu. Fora por ali, e era tudo.

A picada desaguou numa clareira cercada de palhotas e ao lado de uma estrada grande e muito movimentada. Diogo percebeu que o trilho constituía apenas uma maneira de cortar caminho e que a estrada esburacada onde desembocara era a mesma na qual havia circulado minutos antes.

Imobilizou a motorizada e, apoiando-se na perna apesar de permanecer sentado na Farnel Foguete, tirou do bolso o papel com as indicações que lhe haviam dado no hospital. Consultou a folha e ergueu a cabeça, comparando a informação com o que via. As cubatas alinhavam-se em filas mais ou menos ordenadas e a casa de Sheila, a acreditar naquelas indicações, deveria estar na primeira fila, à beira da estrada.

Percorreu as palhotas com o olhar e avistou uma mulher a sair de uma delas com um bebé atado às costas e um balde de plástico equilibrado na cabeça.

"Desculpe, minha senhora", interpelou-a. "Onde é a casa da Sheila?"

A mulher hesitou perante a farda, mas depois apontou para a terceira casa da primeira fila.

"É na Aissa, patrão."

Diogo agradeceu e estacionou diante da palhota. Tratava-se de uma cubata grande, cercada por uma vedação baixa e com algumas partes mal pregadas, embora fosse suficiente para circunscrever a circulação de várias galinhas do mato que deambulavam pelo perímetro; os contornos da vedação davam a impressão de que existia um quintal traseiro.

Depois de deixar a motorizada, o soldado deu uns passos vacilantes, ajeitou a farda, sacudiu uma mancha de pó que lhe sujava o peito e plantou-se diante da palhota.

"Sheila!", chamou. Depois mais alto: "Sheila! Estás aí?"

A cabeça de uma idosa emergiu da sombra da palhota. A mulher observou-o com ar indagador.

"Boa tarde. Posso ajudá-lo?"

"Desculpe, minha senhora", disse Diogo numa voz subitamente suave e adocicada. "Estou à procura da Sheila. Ela está?"

A idosa estreitou os olhos, desconfiada.

"O que lhe deseja o senhor?"

"Precisava de falar com ela. É um assunto da maior importância."

"A Sheila não está."

"Não me sabe dizer quando volta?"

A mulher pareceu interessar-se pelo estranho que lhe aparecera à porta. Deu dois passos trémulos e inclinou-se na direcção de Diogo, estudando-lhe o rosto mais de perto.

"Quem é o senhor?"

"Eu?" A pergunta atrapalhou o furriel, que não sabia o que devia revelar. Teria Sheila contado tudo àquela velha? Ou não teria revelado nada nem queria que ela soubesse o que quer que fosse?

O melhor, concluiu, seria improvisar uma desculpa. "Eu sou... uh... um amigo. Um amigo que... que a enfermeira Sheila tratou no hospital. Vinha-lhe agradecer."

"Um paciente?"

"Isso." Foi a vez de ele se inclinar na direcção da idosa. "E a senhora? Quem é?"

"Eu sou a Aissa. A avó da Sheila."

A face de Diogo abriu-se num sorriso caloroso e sincero.

"Ah, muito prazer!", exclamou com jovialidade. "A Sheila falou-me muito de si."

"Ai sim? E disse bem?"

"Com certeza", assentiu o soldado. Espreitou a entrada da porta da palhota. "A senhora disse que a Sheila não está. Sabe -me dizer quando é que ela volta?"

Aissa abanou a cabeça.

"Não volta."

A notícia fez Diogo sentir um baque.

"Não volta? Porquê?"

"A Sheila foi para Lourenço Marques."

O furriel abriu a boca de surpresa. A informação deixou-o pasmado, mas ao mesmo tempo explicava muita coisa, em particular o silêncio dela em resposta às muitas cartas que lhe remetera nas últimas semanas. Isso era importante, considerou, porque lhe indicava que o mutismo de Sheila resultava simplesmente de a namorada não ter recebido as missivas em que ele explicava em detalhe o que sucedera na aldeia e o seu papel nos acontecimentos. Diogo acreditava firmemente que, quando ela lesse ou escutasse essas explicações, saberia perdoar-lhe. Essa convicção foi reforçada quando se apercebeu de que a rapariga partira para Lourenço Marques e portanto não havia lido as cartas. A sua primeira reacção foi por isso de alívio.

Porém, a atenção deteve-se de novo na informação que a avó da namorada lhe dera e descobriu-lhe um ângulo intrigante que não valorizara à primeira. Sheila partira para Lourenço Marques?

"Ó dona Aissa, o que foi ela lá fazer?"

Um sorriso luminoso, embora desdentado, rasgou o rosto enrugado da velha Aissa, os olhos pequenos e negros a brilharem com a emoção de quem sentia que havia cumprido enfim o seu desígnio nesta vida.

"A minha Sheila casou-se anteontem."

"O quê?"

A face da velha irradiava uma alegria incontida, como o Sol do meio-dia a brilhar sobre o Zambeze.

"Ela e o Ismael vão-me dar um bisneto, graças a Deus."O rosto do homem eternizado na estatueta de pau-preto apresentava-se recortado por traços rasgados na face e na testa, os dentes afiados em triângulo como os de um tubarão. Era possivelmente a quinta vez que José Branco visitava o Museu Etnográfico, mas já estava em Nampula havia mês e meio e aquela parecia-lhe a melhor maneira de passar o tempo.

Deu uns passos para o lado e observou a figura seguinte. Tratava-se de outra estatueta maconde em pau-preto, desta feita de uma mulher a pilar o pilão com uma criança às costas. Quantas vezes não vira ele uma imagem assim, mas em carne e osso, nas suas deambulações pelo distrito de Tete?

Apreciou o olhar do artista maconde e a forma como captara a postura da mulher.

"Olá, tio."

A voz apanhou-o de surpresa. Voltou-se para trás e viu um militar de camuflado e uma boina castanha nas mãos.

"Diogo! O que estás aqui a fazer?"

O sobrinho olhou em redor, certificando-se de que não havia ninguém suspeito nas redondezas. O

museu estava vazio àquela hora da manhã e apenas se lobrigava em redor um empregado que languescia numa cadeira, a cabeça tombada de sonolência, o queixo a colar-se ao peito e um pingo de saliva a espreitar do canto da boca entreaberta.

"Temos andado maningue preocupados consigo", murmurou Diogo. "O tio está bem?"

"Iá, têm-me tratado bem."

"O que lhe querem eles?"

"Eh pá, ainda não percebi. A PIDE trouxe-me para aqui e alojaram-me num quarto do quartel sem poder comunicar com ninguém. Nem telefonemas, nem cartas... nada. Estou em isolamento total. Depois uns oficiais chamaram-me e pediram-me que descrevesse o que vi na aldeia. Não se passou mais nada."