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"Ah, ainda bem."

Acossado pela saudade, o médico vacilou, quase como se receasse formular a pergunta.

"Tens notícias da Mímicas?"

"Tem andado raladíssima consigo. Ia apanhar o avião para Lourenço Marques para tentar saber de si, mas logo que descobri que o tio tinha sido enviado aqui para Nampula fui falar com ela e andámos uma semana a congeminar um plano."

"Foste à Beira falar com ela?"

"Qual Beira? A tia Mimicas está em Tete..."

A novidade extraiu de José um suspiro de alívio.

"Graças a Deus que voltou", murmurou. Hesitou, como se reordenasse os pensamentos. "Tenho andado preocupado com a irmã Lúcia e a Sheila, que foram comigo a uma aldeia que... enfim, que está na origem de toda esta chatice. Tens notícias delas?"

"A freira foi expulsa e recambiada para Espanha", anunciou o sobrinho. O olhar turvou-se e a voz fraquejou-lhe quando a seguir teve de se referir à ex-namorada. "A Sheila foi para Lourenço Marques e... e casou."

O médico limitou-se a assentir com a cabeça enquanto digeria as novidades, os olhos pejados de emoção mas a boca comprimida num silêncio meditativo. Em condições normais aquelas novidades seriam espantosas, mas nesse momento nada o assombrava. Sentiu-se até aliviado por elas. Se a irmã Lúcia tinha sido expulsa, estava já fora do alcance da PIDE, e o casamento de Sheila punha-a também em segurança em Lourenço Marques.

"E tu?", perguntou por fim. "Que estás aqui a fazer?"

"Consegui uma licença de uma semana e vim cá a mando da tia Mimicas."

"Ai sim?", admirou-se José. "Isso tem alguma coisa a ver com o plano de que falaste há pouco?"

Diogo aquiesceu e lançou novas miradas inquietas em redor, sempre preocupado em assegurar-se de que ninguém os estava a escutar.

"Se não fizermos nada, temos medo que lhe possa suceder alguma coisa", disse num tom tenso.

"Os gajos já foram limpar a aldeia e fazer desaparecer os cadáveres. Não sabemos que destino querem dar às testemunhas. A freira e a Sheila não parecem problemáticas, mas o tio é diferente. Se o director do hospital de Tete, que ainda por cima também é delegado de saúde, presidente da Cruz Vermelha e director do Serviço Médico Aéreo, vier a público falar numa coisa destas... está a ver a chatice, não está? Foi por isso que o trouxeram aqui para Nampula e o mantêm incomunicável. Achamos que estão a decidir o que lhe irão fazer." Fez um gesto vago com as mãos.

"Por isso fui com a tia Mimicas à Beira falar com um advogado que ela conhece e que activou..."

"O Rouco."

"Isso. Ele activou uns contactos que tem no estrangeiro e obteve uma informação muito interessante. Parece que uns padres espanhóis de uma missão perto de Tete, a missão de... de São Paulo, acho eu..."

"São Pedro."

"Ou isso... disseram-lhe que já escreveram um relatório sobre o que se passou na aldeia. Ao que consta, o texto encontra- se nas mãos de jornalistas importantes."

A novidade surpreendeu José.

"A sério? Então isso vai rebentar a qualquer momento!..."

O sobrinho fez uma careta e abanou a cabeça.

"Não necessariamente", disse. "Parece que os jornalistas acham o relatório demasiado fantasioso e perguntaram aos padres se eles foram à aldeia ver se efectivamente lá estavam os cadáveres. Os espanhóis admitiram que nunca estiveram lá e explicaram que os relatos que constam dos seus relatórios foram feitos apenas com base em testemunhos de sobreviventes. Acontece que os jornalistas desconfiam que esses sobreviventes sejam turras e que tudo isto não passe de uma acção de propaganda." Diogo falou muito depressa e teve de fazer uma pausa para recuperar o fôlego. "O

doutor Rouco foi informado de que nada será publicado."

O desfecho inesperado da narrativa desapontou o médico, a esperança a fugir-lhe como pó lançado ao vento, a decepção a gotejar-lhe na voz fatigada.

"Nada de nada?"

O furriel fez um gesto veemente com a mão.

"Nada." Respeitou um curto silêncio. "A não ser..."

Aquele início de frase ficou em suspenso, destrancando uma porta sem contudo a abrir.

"A não ser o quê?", atalhou José, como se a esperança emitisse um derradeiro sopro. "Publicam ou não publicam?"

O sobrinho olhou mais uma vez em redor, certificando-se de novo de que ninguém os escutava, e inclinou-se na direcção da orelha direita do médico.

"Eles dizem que publicam só numa condição", sussurrou, tão baixo que o tio, apesar de ter o ouvido quase encostado aos lábios de Diogo, teve dificuldade em escutá-lo. "Precisam de uma testemunha independente e credível que lá tenha estado, alguém que não possa de modo algum ser associado aos turras."

O furriel afastou a cabeça e ficaram os dois a fitar-se. José digeria em toda a sua extensão as implicações e as ramificações daquela condição.

"Ou seja", concluiu o médico, "precisam do meu testemunho."Diogo remexeu nervosamente a boina castanha que tinha nas mãos.

"Eu também podia testemunhar."

"Tu?"

"Estive na aldeia e vi tudo", admitiu, baixando a cabeça. "é uma história muito complicada que lhe contarei depois. Só que estive lá como soldado e o doutor Rouco disse-me que eu poderia acabar morto se abrisse a boca. Como sou tropa, levavam-me para uma missão no mato, davam-me um tiro nas costas e diziam que tinha sido um turra. Tem por isso de ser um civil respeitado."

Voltou a encarar o seu interlocutor. "O tio Zé."

"Querem então publicar o meu testemunho."

"Querem publicar o relatório dos padres", corrigiu o sobrinho. "O seu testemunho destina-se apenas a garantir que esse relatório não é fantasioso. Claro que também pode ser publicado, mas o doutor Rouco opõe-se. Acha que seria demasiado perigoso para si e, além disso, desnecessário.

Basta que valide o relatório da missão de São Pedro e os jornalistas publicam tudo."

José considerou os problemas logísticos que a questão suscitava.

"E como farão vocês para fazer chegar o meu testemunho a esses jornalistas? Olhem que o Rouco está sob vigilância da PIDE..."

Diogo afinou a voz.

"Será o Ernesto", revelou. "Ele tem uns contactos no mato e levará em mãos a sua confirmação até à Zâmbia. Um padre inglês que se encontra em Lusaca encarregar-se-á do resto."

Ficaram os dois a fitar-se, tio e sobrinho, ambos plantados naquela esquina do Museu Etnográfico de Nampula, as palavras enfim trocadas, o que havia a dizer já dito, a decisão final tinha agora de ser tomada. Sentindo que chegara o instante da verdade, talvez aquele para o qual nascera e se preparara a vida inteira, José desviou a atenção para a janela e respirou fundo, os olhos presos às folhas de uma palmeira que ondulavam ao vento, a retina a captar uma sucessão de rostos que lhe desfilaram pela mente. Dizem que se revê a vida no momento anterior ao da morte, o tempo vertido como areia que uma ampulheta despeja na eternidade, mas ao médico isso aconteceu nos segundos que precederam a decisão.

A maneira de um filme acelerado, as imagens a sucederem-se como silhuetas projectadas pela luz ténue da sua memória, lembrou-se do pai, que lhe ensinara a diferença entre o bem e o mal, do professor Pina, que lhe explicara os seus deveres enquanto médico, de Domingos a ser expulso do hospital de João Belo pela afronta de ser preto, de Mimicas a responder com um acto de amor à sua traição, de Ernesto, que salvara e que agora o queria salvar, do sobrinho que atravessara o Norte de Moçambique para lhe levar a redenção, talvez sem consciência de que a buscava também, e sobretudo da criança, do menino que naquela manhã fatídica vira emergir do abraço protector da mãe carbonizada como se tivesse nascido uma segunda vez, devolvido à vida por um branco trajado de branco, resgatado da morte por um acto de amor.