Выбрать главу

Nesse instante José poderia ter chorado. As lágrimas chegaram ainda a brotar-lhe no olhar embaciado, trémulas e teimosas, e uma tristeza lassa derramou-se num suspiro profundo. Mas resistiu. Suportou a comoção que ameaçava afogá-lo e o medo que lhe tolhia os movimentos, e, com a força de quem enfrenta a sombra mais aterradora, mergulhou na treva sabendo que ela era afinal a luz. O seu rosto abriu-se devagar e os lábios, mesmo vacilantes, acabaram por formar um sorriso, primeiro tímido, depois luminoso, um sorriso tão vivo que se tornou certeza e a seguir determinação, como se tivesse afundado o dedo no anel e assim ficado invisível, confrontado enfim com ele mesmo, a sua consciência, o sentido de decência, o dever de proceder bem fossem quais fossem as consequências, porque forte é aquele que enfrenta os fortes quando a causa é justa.

Chegara a hora de José Branco cumprir o seu destino.

Epílogo

A pequena mesa estava preparada com uma elegância simples, como era hábito naquele palacete, com um copo de sumo de laranja fresco, umas fatias de pão de Mafra ainda quente, um frasco dourado de mel transmontano, manteiga açoriana, um queijo da serra da Estrela derretido no prato e uma cafeteira de café acabado de fazer. O homem impecavelmente vestido de fato e gravata entrou na salinha, ocupou o seu lugar habitual e ajeitou o guardanapo no regaço.

"O dona Conceição!", chamou. "Dona Conceição?!"

Uma mulher rechonchuda, de bochechas coloridas como uma camponesa, entrou na salinha a esfregar as mãos anafadas no avental.

"Sim, senhor presidente do Conselho?"

"Não me arranja umas torradinhas?", disse o homem. "Estavam-me mesmo a apetecer..."

"Com certeza, senhor presidente do Conselho. Vou já preparar."

Dona Conceição saiu em passo lesto em direcção à cozinha, deixando o presidente do Conselho sozinho na sala. O governante desviou a atenção para a verdura que se estendia para lá das janelas; a manhã nascera tépida, embalada pelo trinfar melodioso das andorinhas que saudavam o novo dia e iluminada pelo Sol que espreitava ainda baixo sobre as árvores do jardim do palacete. Que dia bonito, pensou com melancolia. Apeteceu-lhe ir lá para fora gozar a manhã de Verão, mas sabia que o desejo não passava de fantasia; sentia-se demasiado tolhido por obrigações para se poder distrair com prazeres frívolos.

Suspirou com resignação e pegou numa pasta que o seu chefe de gabinete lhe havia deixado, como de costume, na mesinha ao lado da cadeira. Abriu-a e pôs-se a reler o decreto que tinha preparado para assinar. O documento, identificado no topo da folha como "Decreto-Lei n.° 353/73", autorizava os oficiais milicianos do quadro de oficiais a ultrapassarem os do quadro permanente das Forças Armadas nas suas promoções, desde que frequentassem um curso intensivo na Academia Militar equiparado aos cursos normais. Era uma medida necessária, uma vez que o Exército não conseguia produzir capitães em número suficiente para as necessidades operacionais, pelo que urgia ir buscá-los aos milicianos. O problema é que a solução colidia com o princípio da antiguidade. Os oficiais de carreira não iriam gostar, pensou, mas que poderiam fazer? Uma revolução?

Fez deslizar os olhos pelo documento e pousou-os no espaço em branco por baixo de "O

Presidente do Conselho de Ministros". Tirou a caneta do bolso do casaco e garatujou a sua assinatura.

Marcello Caetano.

O telefone tocou e ouviu uma voz masculina atender. Era o chefe de gabinete, que entrara ali no palácio de São Bento logo pelas seis da manhã para lhe preparar a agenda do dia. Escutou-lhe os sapatos a calcorrearem o soalho em crescendo, sinal evidente de que se aproximava, e viu-o invadir a salinha do pequeno-almoço com uma bandeja a sustentar o telefone negro, o fio enrodilhado a desdobrar-se pelo chão.

"Bom dia, Augusto", cumprimentou Marcello Caetano. "Nem o pequeno-almoço me deixam tomar em sossego, hem?"

"É verdade, senhor professor."

O presidente do Conselho assentou o olhar desanimado no telefone pousado na bandeja; sabia que quando lhe ligavam era só para resolver problemas ou para comunicar aborrecimentos. Ou eram chatices relacionadas com a guerra no Ultramar, ou eram os protestos nas Nações Unidas, ou era um novo encarecimento do petróleo, cujo preço por barril quadruplicara desdp o início do ano e fizera disparar a inflação. Enfim, raramente dali vinham boas notícias.

"O que é agora?"

O chefe de gabinete depositou a bandeja na mesa, mesmo ao lado do copo de sumo de laranja.

"É o senhor embaixador em Londres, senhor professor", anunciou. "Diz que tem muita urgência em falar com o senhor."

"Ah!", exclamou Marcello Caetano, subitamente entusiasmado. "é por causa da minha ida a Londres na próxima semana. São os seiscentos anos do Tratado de Aliança. Ah, vai ser uma rica comemoração!" Indicou uma cadeira vazia. "Sente-se aí, Augusto. Ponha-se à vontade, homem.

Coma alguma coisa!"

"Obrigado, senhor professor."

O chefe de gabinete ocupou o lugar à mesa e o presidente do Conselho agarrou o telefone. Com tantos problemas aborrecidos na governação, quase todos derivados da guerra no Ultramar, era um verdadeiro bálsamo poder falar de coisas agradáveis. A visita a Londres para celebrar a velha aliança, pressentiu, seria uma delas.

"Senhor embaixador, bom dia!", saudou com jovialidade. "Já tem tudo engalanado para a visita?"

"Bom dia, senhor presidente do Conselho", retorquiu a voz do outro lado da linha. "Sim, está tudo a andar."

"E o encontro com a rainha? Tudo afinado?"

"A recepção vai ser no Palácio de Buckingham. O protocolo está todo tratado."

"E a imprensa? Vamos ter uma cobertura em grande?"

A voz do outro lado hesitou."Pois, senhor presidente do Conselho, a imprensa... enfim, é justamente por isso que lhe estou a ligar."

O tom sombrio que só então detectou na voz do embaixador constituiu um sinal de alerta.

Marcello Caetano franziu o sobrolho, subitamente preocupado.

"O quê!? Não me diga que os jornalistas não vão dar atenção à visita!... Só nos faltava mais essa!"

Nova hesitação do embaixador.

"O problema não é bem esse, senhor presidente do Conselho", devolveu. "Receio até que eles nos venham a dar demasiada atenção..."

"Demasiada atenção? Ó homem, desde quando é que a atenção da imprensa é demasiada?"

O embaixador fez um estalido contrariado com a língua.

"é por causa do Times, senhor presidente do Conselho. O jornal encheu toda a primeira página desta manhã com uma notícia... enfim, desagradável. E também o editorial. Isto é um problema. As rádios não falam de outra coisa e já recebi aqui uma data de telefonemas da imprensa. Os telefones não param de tocar, parece um concerto. Um horror! Até a BBC quer uma declaração para o Nine 0'Clock News! Já tratei de remeter para Lisboa vários exemplares do Times, claro. Devem seguir no primeiro voo da TAP e espero que estejam aí ao princípio da tarde, se Deus quiser. Convinha talvez dar instruções para alguém ir ao aeroporto buscar a encomenda. Ainda há pouco eu dizia aqui ao meu attacbé que a TAP, por vezes, não revela o devido cuidado com as malas diplomáticas e que..."