A forma como o embaixador falava sobre o assunto, dizendo que havia um problema mas evitando explicá-lo e perdendo-se até em minudências irrelevantes, constituiu um novo sinal de alerta. E dos grandes. Por esta altura já Marcello Caetano não tinha dúvidas de que, fosse o que fosse o que aí vinha, não seria agradável. Mais um aborrecimento! Respirou fundo, como habitualmente quando se preparava para as más notícias, e enfrentou o bocal do telefone.
"Ó senhor embaixador, deixe-se lá de rodeios", murmurou numa voz subitamente despida de emoção, mero registo monocórdico tão gelado quanto o olhar que ostentava nesse momento. "Que notícia é essa que o Times publicou?"
O embaixador manteve-se um tudo-nada silencioso, provavelmente também ele a ganhar coragem para lidar com a informação, e pigarreou antes de voltar a falar.
"Senhor presidente do Conselho", começou por dizer. "Por acaso já ouviu falar de um lugar chamado Wiriyamu?"
Nota final
Apesar de ter desempenhado um papel na confirmação do massacre de Wiriyamu, nunca à minha frente o meu pai falou sobre o que viu no dia em que visitou a aldeia destruída. Em bom rigor, não tinha por hábito trazer para casa as questões e os problemas que enfrentava no trabalho.
Aconteceu uma ou outra vez fazer diante de mim uma referência bem-humorada a um qualquer aspecto da sua vida profissional no mato, como a amizade que estabelecia com os feiticeiros das aldeias ou aquela vez em que lhe ofereceram um elefante bebé para lhe agradecer a ajuda que prestava, mas jamais uma exposição estruturada de tudo o que fez ou lhe aconteceu.
Assim, tudo o que sei sobre a sua vida até ao dia do massacre resulta do que me disseram as pessoas que o conheceram e com ele viveram essas situações. Lembro-me, porém, de viajar com o meu pai de e para o Songo no Piper Cherokee do Serviço Médico Aéreo, de sobrevoar o Zambeze do Songo até Tete e observar lá em baixo o espantoso espectáculo do banho dos elefantes e dos hipopótamos e dos antílopes e dos crocodilos, e de uma vez ter feito o périplo semanal do serviço na companhia do meu amigo Nuno Canhão, filho mais velho do comandante da PSP de Tete.
Como facilmente se depreende das minhas palavras, esta obra é pois inspirada em factos reais, embora livremente ficcionados. As narrativas amorosas são puras invenções, uma vez que coisas dessas raramente alguém relata a um romancista, mas decerto que em África, e naquele tempo, decorreram muitas histórias semelhantes. Afinal não havia televisão para entreter... As outras histórias são quase decalcadas da realidade ou ficções inspiradas em coisas que realmente aconteceram e que comprimi aqui e ali para o romance.
A ficção é particularmente livre no final do livro. Embora tenha sido levado para Nampula e permanecido incomunicável durante meses, nunca o meu pai contou o que lá se passou, para além de que havia sido "bem tratado". Sei que fez um protesto na qualidade de presidente da Cruz Vermelha de Tete e há múltiplas informações de que ele terá de facto preparado um relatório sobre o que testemunhou em Wiriyamu, mas nunca vi esse documento.
O inspector Joaquim Sabino, da DGS em Tete, afirmou ter- lhe ordenado que não mostrasse o relatório a ninguém. Não sei se o fez ou não. O facto é que o padre Hastings, que denunciou o massacre no The Times, o cita como fonte de informação. E, na preparação deste romance, cruzei-me no Hotel Polana, em Maputo, com um velho conhecido do meu pai que me disse que, pouco tempo depois do massacre, ele lhe contou pormenorizadamente tudo o que vira na aldeia, sinal de que não cumpriu a ordem de silêncio.
Para todos os efeitos, e embora Wiriyamu tenha constituído o maior embaraço público de Portugal na guerra em África, esta obra não é exclusivamente sobre os trágicos acontecimentos nessa aldeia. E antes um romance sobre os Portugueses na África onde nasci, um registo ficcional de um pedaço da nossa história que procurei abordar nas suas múltiplas contradições e evitando as colorações ideológicas que tendem a simplificar os factos e as suas causas. A história é feita de histórias e são elas que a tornam viva.
Devo agradecimentos a um conjunto de pessoas que se disponibilizaram para me ajudar na reconstituição dos factos e sobretudo do espírito daquele tempo. Obrigado à minha mãe, Maria Manuela Matos; à minha tia Rosalina Rodrigues dos Santos; ao meu tio coronel Mário Rodrigues dos Santos — todos pelas narrativas de família que serviram de inspirarão a este romance. Ao meu primo Carlos Marques, que comigo partilhou a sua experiência de guerra em Tete; a Djamila, a enfermeira que com o meu pai e a irmã Lúcia foi a Wiriyamu logo a seguir ao massacre; ao Augusto Macedo Pinto, pela ajuda e pelo entusiasmo e também pelo caloroso acolhimento no meu regresso a Moçambique. A Antonino Melo, o homem que comandou a 6." Companhia de Comandos de Moçambique na operação que culminou no massacre de Wiriyamu e que me relatou ao pormenor tudo o que fez, mandou fazer e testemunhou; a Vinte Pacanate, um dos sobreviventes, que me descreveu o que se passou no dia do massacre; a Lúcio Jeremias, funcionário da PIDE em Tete. A Margarida Canhão, viúva do comandante da PSP de Tete; a Castro Fontes, chefe da Missão de Fomento e Povoamento do Zambeze e do seu sucessor, o GPZ; a Augústo Coutinho, antigo médico em Cabora Bassa; a Joaquim Prazeres, fundador do Aero-Clube de Tete e piloto ocasional do Serviço Médico Aéreo; a Óscar Ribeiro, outro piloto ocasional do Serviço Médico Aéreo. A António Ferreira dos Santos, Leonardo Júnior, Armando Soares e Carlos Salvador, que me guiaram por Tete. A Serafim Guimarães, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; a Olga Magalhães, também da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; a Amélia Ferraz, directora do Museu de História da Medicina; a Assunção Lima, do Gabinete do Antigo Estudante da Universidade do Porto. Aos funcionários do Arquivo Histórico-Militar, que me facilitaram o acesso à pasta da 6.a Companhia de Comandos de Moçambique; aos funcionários da Biblioteca Nacional; e a Leonor Vaz, da Fundação Calouste Gulbenkian, que me cedeu cópias das deliberações da fundação no apoio ao Serviço Médico Aéreo.
Entre as obras consultadas, destaque para Wiriyamu, de Adrian Hastings; Guerra Colonial, de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes; Guerra de África — Moçambique, de Francisco Garcia;
Caetano e o Ocaso do «Império» — Administração e Guerra Colonial em Moçambique durante o Marcelismo, de Amélia Neves de Souto; Memória das Guerras Coloniais, de João Paulo Guerra;
Massacres em Africa, de Felícia Cabrita; Memórias do Colonialismo e da Guerra e A PIDE/DGS na Guerra Colonial, de Dalila Cabrita Mateus; A História da P1DE, de Irene Flunser Pimentel; e A Guerra de África, de José Freire Antunes.
O último agradecimento, e o mais importante, vai para a Florbela, como sempre a primeira leitora.