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De pecador.

Acabou por ganhar coragem e levantou-os. Apesar do angustiante flagelo da consciência, ou talvez por causa dele, impôs-se a si mesmo o suplício de enfrentar os seus actos e os olhares reprovadores da imensa multidão que o observara a pecar tão desavergonhadamente. Quando rodou a cabeça e a medo encarou o mundo em redor, todavia, acabou por perceber, surpreendido, que ninguém parecia ter notado; os transeuntes circulavam com indiferença, alheios ao crime hediondo que acabara de ser cometido mesmo diante deles. A verdade, a estranha verdade, é que se comportavam todos como se José não existisse; era como se o crime nem tivesse sido cometido, como se um bolo a menos realmente não tivesse grande importância.

Hesitou.

"Sim, é isso!", murmurou com intensidade. "E mesmo isso!"

Que importaria um bolo a mais ou a menos? Que diferença fazia? Quem se ralaria com tal coisa? Abrandou e acalmou-se. Qual o problema? O coração, momentos antes um batuque imparável, nervoso e descontrolado, voltou à sua batida tranquila. Seis ou cinco bolos era tudo a mesma coisa, ninguém notaria a diferença. Aliás, o mesmo se aplicaria se fossem quatro, não é verdade? Quem toparia a marosca? Quem dava cinco dava quatro. Que diferença fazia?

Enquanto considerava isto, os dedos pareceram ter novamente adquirido vida própria e, sem que a mente lhes tivesse transmitido tal ordem, voltaram ao embrulho, de onde surripiaram um segundo bolo. Quase sem dar por isso engoliu furtivamente a segunda iguaria. Ai!, gemeu, mas logo contrapôs: seis, cinco ou quatro bolinhos, era tudo a mesma coisa!

Voltou a fechar o embrulho e retomou a marcha. Logo ali na esquina, todavia, sentiu a dúvida assaltá-lo. Quem acreditaria que havia comprado quatro bolos? Abanou a cabeça. Ninguém.

Ninguém compraria quatro bolos para oferecer a alguém. Ninguém! Quatro bolos era coisa que não se usava! Ainda se fossem três, vá que não vá, a coisa passava, sempre era metade de meia dúzia, um número bonitinho. Mas quatro? Hmm, nem pensar! Três era um número mais convincente, não era? Ou seis ou três. Quatro é que não podia ser. Pois, concluiu, balouçando afirmativamente a cabeça. Tinha de acertar as contas.

Assaltado quase por um sentimento de obrigação, José voltou a meter a mão no pacote, de onde extraiu o terceiro bolo, que desta vez comeu com tranquilidade, sem medo, à vista de todos, exibindo ao mundo o prazer da gula. Não, não estava a cometer nenhuma infracção. Limitava-se a acertar as contas. Claro que era uma maneira agradável de acertar as contas, não era? Mas disso não tinha ele culpa. Olaré! O que importava é que ia apresentar à tia uma conta certa.

Três bolos.

Mas seriam três bolos mesmo uma conta assim tão certa? A dúvida assaltou-o algumas dezenas de metros mais adiante, sacudindo-o com violência. Bem vistas as coisas, para que precisava a tia Joana de três bolinhos de coco? Sempre que ia lá a casa, ela quase não comia nada! Dois bolos não lhe bastariam? Para que raio quereria três? Não, não podia ser. Três eram de mais! A mão tornou-se firme e foi com resolução que a enfiou dentro do embrulho e tirou mais um bolinho. Comeu-o devagar, ao ritmo lento e prazenteiro dos passos que o conduziam inexoravelmente a casa da tia.

Quando acabou lambeu os dedos, ergueu o embrulho e contemplou o seu interior. Dois bolos chegavam-lhe perfeitamente, concluiu. Perfeitamente. Eram a prenda ideal.

Dois.

José pôs-se a imaginar a tia a recebê-lo com um grande sorriso e a agradecer-lhe os dois bolinhos de coco. Comeria um, estava visto. Mas o que faria com o outro? O pequeno coçou o queixo. Hmm, provavelmente oferecê-lo-ia a ele. Era mulher para isso, não era? Tia generosa, gostava muito de oferecer coisas, uma mãos-largas, e então com os sobrinhos, uf, nem se falava!, era uma loucura, dava-lhes tudo, tudo. Sim, não havia dúvida, ela ia oferecer-lhe o segundo bolo, não era pessoa para se alambuzar com os dois e deixá-lo sem nada, a ver navios. Coitadinha da tia, era mesmo simpática... Uma santa! E tinha sofrido tanto com a morte do marido, 'tadinha! Como ela não havia muitas. Suspirou. Hmm, pois. Bem vistas as coisas, era até um favor que lhe fazia se comesse já o segundo bolo. Então não era? Assim ia adiantando serviço e a tia ficaria toda contente.

Era isso, não havia que hesitar.

Comeu o penúltimo bolo.

Dobrou a esquina do antigo quartel e deu com a casa da tia Joana. Foi nesse instante que voltou a espreitar o embrulho. Ergueu o pacote e sentiu-lhe o peso; constatou que se tornara demasiado leve, pesava menos que um jornal. Que diabo!, pensou. Um embrulho tão grande para levar apenas um bolinho! A constatação deixou-o preocupado. Aquilo já era coisa para dar um pouco nas vistas... Ela iria topar logo que faltavam bolos. Diabo da tia, não lhe escapava nada! Espreitou para o interior do pacote e analisou todo o espaço em torno do único bolo que lhe restava. Não havia dúvidas, aquilo notava-se. Além do mais, o que faria a tia quando visse que só havia um bolo no pacote? Comia-o e deixava o sobrinho a ver? José abanou a cabeça. Hmm, não era pessoa para isso.

Se bem conhecia a tia Joana, ela ia oferecer-lhe o bolo. Que bondosa que a tia era! Os olhos fixaram-se-lhe então no derradeiro bolinho de coco. Não havia dúvidas, a tia não o iria comer. Havendo só um bolo, era certo e sabido que lho ofereceria a ele. Não era ela uma santa?

Parado diante do portão, venceu a derradeira hesitação e meteu o sexto bolo à boca. Mastigou-o com violência e engoliu-o à pressa. Ainda a lamber os beiços para apanhar as últimas migalhas de farinha açucarada, cruzou o portão e entrou no quintal.

Bateu à porta.

Ouviu passos a aproximarem-se e a porta abriu-se, revelando a figura esguia e alta da tia Joana, um sorriso a dançar-lhe nos lábios.

"Olha quem aqui está!", exclamou a tia abrindo os braços. "O Zezinho!"

Com as mãos atrás das costas a esconder o embrulho, José baixou a cabeça e mirou o soalho.

"Olá, tia!", saudou, a voz num fio, quase a sumir-se.

"Então, Zezinho? Entra." Joana puxou-o para dentro de casa. "O que te traz por aqui, rapaz?"

Sempre com os olhos voltados para baixo, tirou as mãos de trás das costas e estendeu o pacote.

"Parabéns, tia!", murmurou. "Trouxe-lhe aqui a sua prenda de anos."

Joana pegou no pacote e estranhou o peso, ou a falta dele.

"O que é isto?"

"Comprei meia dúzia de bolinhos de coco para si."

A tia abriu o embrulho, que já vinha meio desfeito, e espreitou para o interior.

"Mas onde estão eles?"

José torceu-se todo, consciente de que o grande dia tinha enfim chegado.

"Comi-os."

Tornara-se um pecador.Os pecados foram-se revelando mais graves com o tempo, graças a Deus, mas nem sempre por livre iniciativa do pequeno José. Por cima do rapaz pairava uma influência poderosa, a atracção de alguém que o dominava e que o arrastava para a transgressão.

António, claro.

O irmão mais velho, por malícia ou puro tédio, aproveitava a modorra do tempo derramado em casa em horas sem rumo para desviar o mais pequeno até ao mundo do interdito. Como passatempo ensinou o irmão a arrancar a ponta das espigas de milho e a triturar os fiapos, a que chamavam barba de milho, enrolando-os em papel de jornal e pegando lume às pontas. Depois colava o papel enrolado na boca e aspirava-o. José engasgou-se da primeira vez, sentindo o gás acre a atravessar-lhe a garganta e a queimar-lhe os pulmões, e quis saber o que era aquilo.