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"Um cigarro à minha maneira", explicou António entre duas passas fumarentas.

Tal como José, António era guloso; um mal de família, sem dúvida. Embora a diferença de idades o afastasse do irmão maisnovo, o facto é que via em José o instrumento ideal para alimentar a gula; afinal o mais pequeno obedecia-lhe cegamente, mostrava-lhe uma fidelidade canina e ingénua que o tornava uma verdadeira marioneta nas suas mãos. António não hesitava em usar esse poder.

Já perto das férias de 1944, que iria passar com o doutor Reis e família a banhos na Foz, o mais velho lembrou-se um dia de fazer uma inspecção à casa. Percorreu-a de alto a baixo e localizou tudo o que achava de interesse, em particular as rabanadas e os bolinhos de bolina. Ao fim da tarde fechou-se no quarto, no sótão, para comer as amêndoas doces que o senhor Pires mandara de Lisboa para a família Branco. Tornara-se uma tradição: todos os anos o velho amigo do pai remetia para Penafiel um grande pacote de amêndoas, que depois eram divididas pela família em doses iguais.

Como é bom de ver, António e José tudo devoravam de uma assentada; não conseguiam resistir à visão daquelas delícias estendidas diante deles. As duas raparigas, mais pacientes e contidas, tragavam uma ou duas amêndoas e, respeitando os ensinamentos de poupança que lhes vinham do pai, guardavam o resto na gaveta de um armário do quarto. Essa gaveta, claro está, encontrava-se fechada à chave. Era precisamente aí que residia o busílis da questão, o cerne do problema, ou, para utilizar a expressão mais adequada às circunstâncias, a palavra- -chave.

A chave.

António sabia onde se escondia a chave.

Enquanto saboreava as derradeiras amêndoas da sua ração, o rapaz ia congeminando um plano de ataque. Seria uma operação eficiente, coordenada, devastadora, uma operação como aquela que a BBC dizia ter sido lançada pelos Aliados na Normandia. Porém, apesar de toda a concentração, de todo o esforço intelectual com que delineou os pormenores do raide que tinha em mente, a verdade é que não foi difícil encontrar o operacional para executar esse plano, uma vez que ele tinha um nome familiar. Chamava-se José.

Naquela noite, quando as últimas lamparinas foram apagadas e a casa dos Branco mergulhou no sono, António foi de pé leve até ao quarto do irmão e sacudiu-lhe o ombro.

"Zé!", chamou, num sopro brusco. "Zé!"

O irmão abanou a cabeça, estremunhado. "Hã?"

"Zé! Acorda!"

O pequeno focou os olhos e, com ar ensonado, mirou António.

"Hã? O que é?"

"Acorda!"

"Já acordei!", quase rosnou, erguendo-se e apoiando o corpo num cotovelo. "O que é?"

"Chiu!", ciciou António, colando o indicador à frente da boca. "Fala baixinho, está tudo a dormir!"

José olhou em redor, atrapalhado, e constatou que de facto a noite se prolongava, escura, e a casa era ainda embalada pelo ritmo do sono.

"Que horas são?"

"Onze da noite."

"Tão tarde?", surpreendeu-se José. "O que é, António? Passa-se alguma coisa?"

"Passa-se que vamos encher o papo", devolveu António com uma ponta de impaciência, puxando-lhe pelo braço. "Anda, levanta-te! Vá!"

Sem nada compreender, José obedeceu ao irmão e saltou da cama. António fez-lhe sinal de que se vestisse. O mais novo pôs as roupas, mas sem calçar os sapatos. Quando terminou, e seguindo ainda as instruções do irmão, sentou-se na cama.

"Então?", foi tudo o que perguntou, com ar expectante.

António fixou-se ao lado e adoptou uma postura condescendente.

"Já ouviste falar no general Montgomery?"

"Quem?"

"O general Montgomery. É o melhor general do mundo. E inglês."

"O pai diz que o melhor é o Archil." "Hã?"

"O pai diz que o melhor general do mundo é o Archil."

A perplexidade no olhar de António prolongou-se por alguns instantes, até o nome ser identificado.

"O Churchill?", riu-se.

"Sim, o Archil."

O mais velho abanou a cabeça.

"Não, esse não é general, palerma. Esse é o que manda nos generais."

"E o dono do mundo?"

"Hmm... mais ou menos. Mas quem é mesmo general, daqueles que andam na guerra, é o Montgomery, percebes?"

"Sim", disse José, evidentemente sem perceber.

António espalmou a mão no peito.

"Ouve bem. Eu agora sou o general Montgomery, estás a ver?" Bateu com o indicador na cabeça. "Tenho aqui preparado o desembarque na doçaria."

"O desembarque na Normandia?", admirou-se José, papagueando a expressão que ultimamente os adultos repetiam à hora do jantar.

"O desembarque na doçaria", repetiu António com ar grave, parecia mesmo que se preparava para tomar decisões de vida ou de morte.

"Que é isso?"

"É a operação que vamos agora lançar." Inclinou a cabeça e aproximou os lábios do ouvido direito do irmão. "Queres comer rabanadas?"

José arregalou os olhos e balançou energicamente a cabeça para cima e para baixo.

"Sim."

"E bolinhos de bolina, também queres?"

"Quero pois. Então não havia de querer?" Cerrou as sobrancelhas, numa expressão desconfiada.

"Mas a mãe deixa?"

"Claro que não deixa. E por isso que isto é uma operação secreta."

"Ah", exclamou José, não querendo mostrar ignorância mas ainda sem entender muito bem a ideia. "Que é isso?"

"Uma operação secreta? E... deixa cá ver... é irmos lá às escondidas e gamarmos os doces."

"Ah." Hesitou, incerto quanto à sensatez do projecto. "E se a mãe descobre?"

"Não descobre. Se tu fizeres tudo bem, ela não descobre nada."

"Se eu fizer tudo bem?"

"Sim."

"Eu?"

"Sim, tu, claro. Quem mais querias que fosse?"

"Então e tu?"

"Eu? Eu não. Eu sou o general Montgomery, lembras-te? Os generais mandam os soldados fazer as coisas. Eu sou o general e tu és o soldado, percebes? Eu mando e tu fazes. Não tem complicação nenhuma, é só seguires as minhas ordens e o desembarque na doçaria será um sucesso."

José fez um ar pensativo.

"Olha lá, António, isto não é pecado?"

"Claro que é, ó idiota! E por isso que tens de executar a operação, não percebes?" Apontou-lhe o indicador. "Precisas de pecados para confessar. Se não fizeres isto, o que diabo vais confessar tu no domingo ao padre Augusto?! Que deste uns peidos às escondidas? Que tiraste uns burriés do nariz sem o pai ver?"

O mais novo meditou naquelas sábias palavras. Como sempre, concluiu, o irmão tinha razão.

Precisava realmente de facturar uns pecados e tinha diante de si uma oportunidade de ouro, uma daquelas ocasiões que seria um crime desperdiçar.

"Obrigado, António", exclamou com um sorriso. "És mesmo meu amigo." Saltou da cama e pôs-se em pé, endireitando o corpo. "Vamos lá às rabanadas?"

Passaram o Verão em raides cirúrgicos, numa rotina clandestina que se repetia na pacatez das trevas. À noitinha, quando toda a família dormia e a vida se suspendia, António ia despertar José e o pequeno saía à aventura, como um batedor, explorando os cantos da casa. O primeiro alvo, devidamente assinalado pelo irmão mais velho, era o pesado molho de chaves que a mãe guardava no avental. José esgueirava-se pela porta do quarto dos pais e, rastejando, no início, ou caminhando curvado, quando ganhou mais traquejo, mas sempre com infinitas cautelas, abria o armário e apalpava as roupas penduradas nos cabides, passava a mão por todas, ao de leve, até descobrir o avental; fazia deslizar os dedos até aos bolsos, num exercício que só terminava quando identificava a superfície fria e dura do molho, que retirava com suprema lentidão para evitar um chocalhar denunciador do metal.