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Com o molho de chaves nas mãos, entregavam-se os dois à orgia das guloseimas. Abriam os armários da cozinha e da sala de jantar, ou entravam na despensa do rés-do-chão, e devoravam duas fatias de rabanadas e um bolinho cada um. Embora se tratasse supostamente de uma orgia, a verdade é que tudo comiam com alguma contenção. Afinal era importante não exagerar; caso contrário a mãe daria pela marosca na manhã seguinte e as coisas complicar-se-iam. Como não podiam arrasar todos os doces, apenas aliviavam os pratos de umas quantas fatias; dias depois a mãe reforçava a dose, sem perceber que as rabanadas e os bolinhos iam desaparecendo aos poucos nas furtivas excursões nocturnas dos dois rapazes.

O problema é que António não se contentou com as rabanadas e os bolinhos de bolina. Cansado já daquela dieta repetitiva, decidiu atacar também as amêndoas das irmãs. Os almejados tesouros encontravam-se trancados numa gaveta cuja chave, por maravilhosa coincidência, se achava igualmente no fatídico molho da mãe. O mais velho decidiu passar à acção na sua última semana antes das férias; para isso bastou-lhe convencer José a lançar um raide decisivo ao quarto das raparigas, operação que, como era de esperar, decorreu com o habitual sucesso. O pequeno voltou com o embrulho das amêndoas doces das irmãs debaixo do braço e logo ambos engoliram duas cada, voltando José a guardar o resto no seu sítio. Na noite seguinte repetiram a operação e na outra noite também, fazendo sucessivas incursões no quarto das irmãs, que se prolongaram até as férias de António começarem.

Só que as amêndoas, ao contrário das rabanadas e dos bolinhos, não eram supríveis. Uma amêndoa comida era uma amêndoa desaparecida, uma vez que o senhor Pires, decerto por avareza, não tinha o elementar cuidado de mandar reforços para substituir aquelas que se sumiam durante a noite. António sabia isso, claro, mas a José nunca ocorrera o problema. Como é bom de ver, o que tinha de acontecer aconteceu.

Foi numa manhã do início de Julho que Lourdes resolveu deliciar-se com uma apetecível amêndoa do senhor Pires. Ao abrir a gaveta descobriu, horrorizada, que só lhe restavam três minúsculos exemplares, por sinal os mais mirrados e miseráveis do lote. Depois de inquirir sobre o paradeiro das restantes amêndoas junto da irmã e da mãe, logo se concluiu que andava por ali mão da rapaziada.

Seguiu-se, claro está, uma manhã de pranto, com Mana e Lourdes a derramarem sentidas lágrimas pelas amêndoas para sempre perdidas.

"Foste tu que tiraste as amêndoas às tuas irmãs?"

O pequeno José foi chamado ao escritório do pai, diante de quem se plantou, trémulo e temeroso, vergastado pelo olhar feito de lei e justiça.

"Foste tu?", repetiu o pai, a voz intensa de autoridade. "Tiraste as amêndoas das tuas irmãs?"

O mais novo dos Branco nem conseguia levantar os olhos. O queixo começou a vibrar e as pálpebras molharam-se. No terror do momento acabou por fazer que sim com a cabeça.

"Só tu? Ou o António também?"

O irmão mais velho, que tudo previra em tempo oportuno e tratara de se pôr a conveniente distância, gozava já na Foz os folgados prazeres da vida a banhos com o doutor Reis e família. José sentiu por isso o peso de toda a injustiça daquele instante, a tortura de enfrentar sozinho as amarguras do momento em que tinha de prestar contas.

"Ele também", confessou num fio de voz.

Sem largar os olhos do pequeno, o pai suspirou e recostou-se na cadeira. Pousou a mão na secretária, tamborilando os dedos pensativamente na madeira, e fez sinal ao filho.

"Anda cá", chamou-o, batendo com a palma da mão na sua própria coxa. "Senta-te aqui."

José ficou momentaneamente desconcertado com a ordem, incapaz de interpretar as intenções do pai. Receava a autoridade que aquela voz firme exprimia, mas o facto é que não se lembrava de alguma vez ter sido sovado, como lhe acontecia na escola às mãos dos professores ou como lhe contavam alguns colegas a propósito dos próprios pais. Seria agora que o seu lhe poria também a mão em cima?

"Anda cá", repetiu o pai no mesmo tom, dando de novo palmadinhas na coxa para assinalar o local. "Senta-te aqui."

Estava fora de questão desobedecer, pelo que, embora esmagado de respeito e quase paralisado de medo, José se aproximou do pai e se acomodou sobre a coxa dele, a face voltada para as inúmeras molduras com fotografias de família pregadas na parede à frente da secretária.

"As amêndoas eram boas?"

A pergunta foi feita com inesperada doçura, tranquilizando José. O momento em que o pai o iria sovar ainda não chegara. Sentiu por isso a confiança regressar e a voz também.

"Eram."

"Andaste portanto na boa vida."

"Sim."

O capitão Branco recuou ligeiramente o tronco, de modo a poder fitar o filho nos olhos.

"Tu ainda és pequeno, mas gostaria que começasses já a pensar nesta pergunta que te vou fazer", disse. "O que é uma vida boa?"

Surpreendido com a pergunta, José pestanejou e devolveu o olhar ao pai. O que era uma vida boa? Que questão seria aquela? Onde queria o pai chegar?

"Imagina que vives muito tempo", retomou o capitão, sentindo a perplexidade do pequeno perante a pergunta que lhe fizera. "Mas um dia todos morremos, não é? Quando morreres, Deus chama-te para o pé dele e pergunta-te: «Tiveste uma vida boa?» Que irás tu responder? «Sim, tive.

Comi as coisas dos outros. Roubei, enganei, fui desonesto. Tive uma boa vida.»" Fez uma pausa. "E

isso o que Lhe vais responder?"

O filho imaginou a cena, Deus diante dele tão justiceiro quanto o pai, talvez mais ainda, e os actos da sua vida expostos no juízo final. Ficou paralisado de horror, incapaz de responder à pergunta.

"Uma vez conheci no Porto um homem muito rico que me disse que tinha uma boa vida.

Possuía um automóvel, uma grande casa na Foz e outra em Lisboa e outra no Rio de Janeiro, grandes propriedades na Régua e em Amarante e fartava-se de viajar. Ia a Madrid, a Paris, a Londres. Mas com tudo isso afastara-se da família e os amigos só o queriam porque ele era rico.

Fiz-lhe, por isso, a mesma pergunta. «O senhor anda numa boa vida, mas acha realmente que tem tido uma vida boa?» Ele ficou um longo momento calado e acabou por responder: «Não.» Sabes porquê? Porque andar na boa vida e ter uma vida boa são coisas diferentes. Andar na boa vida é viver no conforto e no luxo, é ter grandes casas e grandes carros, é aproveitar-se das coisas e gozar o momento. Ter uma vida boa é diferente. É ter amor e amigos, é ter valores, é ajudar os outros, é ter carácter e ser honesto, é ser feliz e fazer os outros felizes. Esses são os que têm uma vida boa.

Estás a perceber?"

José fez que sim com a cabeça e o pai ergueu um dedo e apontou-o ao rosto do filho.

"Quando comeste as amêndoas das tuas irmãs andaste na boa vida. Mas é importante que saibas que não tiveste uma vida boa. Roubaste as tuas irmãs e enganaste-as. Viveste com um segredo que te sujou. Viver bem não é viver à grande, é viver limpo e feliz."

O filho baixou a cabeça, sentindo-se um miserável.

"Foi um pecado mau?"

"Sim. Muito mau."

"Deus vai-me mandar para o Inferno?"

O capitão Branco respirou fundo, como se essa não fosse a pergunta certa a fazer naquelas circunstâncias.

"Talvez, não sei", retorquiu. "Mas há pessoas que acham que Deus não existe e mesmo assim são boas pessoas. Se nós vivemos uma vida boa não é porque temos medo de ir para o Inferno ou receamos o que os outros possam pensar de nós, mas porque essa é a maneira certa de viver.