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Entendes?"

O pequeno olhou para o pai, manifestamente confuso. Percebendo que teria de explicar as coisas de outra forma, o capitão lembrou-se de um velho texto de Platão e retirou o anel de casamento que lhe enlaçava o dedo.

"Estás a ver este anel?"

"Sim."

Enfiou o anel de novo no dedo.

"Imagina que quando pões este anel ficas invisível. Nem Deus te consegue ver. Ficando invisível, ninguém poderá saber o que tu fazes, não é? Isto quer dizer que nada do que fizeres te será atribuído. Nem as coisas boas nem as más. Podes roubar uma pessoa e ninguém saberá. Podes salvar outra e ninguém saberá. Que farás nessas circunstâncias? Farás o que farias se te pudessem ver? Ou farás coisas diferentes?"

José ficou um longo instante a imaginar esse poder e o que faria com ele. O exercício de imaginação foi, porém, interrompido pelo pai, que lhe pegou pela cintura e o pôs no chão, indicando desse modo que a conversa terminara.

"É esse o teste das pessoas boas", concluiu. "Comporta-te sempre com honestidade, estejam ou não outros a ver-te, possas ou não ser premiado, e terás uma vida boa." "Aqui Londres. Esta é a BBC."

Tal como a maioria das notícias da guerra, o anúncio do fim das hostilidades também veio pelas ondas da rádio, embora sem grande surpresa para ninguém. A recente notícia da morte de Adolf Hitler tinha criado em todos a impressão de que a guerra iria a qualquer momento acabar na Europa. Daí que, quando a voz solene e pausada de Augusto Silva entrou pela sala depois de almoço com a grande novidade, foi recebida com sorrisos aliviados e não com festa efusiva.

Embora contasse apenas nove anos, José dispunha de suficiente noção dos acontecimentos para discernir a importância do sucedido e celebrar o fim do conflito com o tradicional cálice de vinho do Porto erguido por toda a família logo que a notícia irrompeu da telefonia. Desde que tinha consciência de si que o mundo vivia em permanente estado de guerra, pelo que sempre supusera que ela fazia parte da ordem natural das coisas. A revelação de que as hostilidades haviam acabado deixou nele uma estranha incerteza; não imaginava ser possível respirar sem os noticiários vomitarem novidades envolvendo figuras misteriosas como Hitler, Churchill, Roosevelt ou Estaline e locais exóticos como o Vístula, o Reno, as Ardenas ou monte Cassino.

Restavam, claro, os Japoneses. A guerra prolongou-se ainda algum tempo no Pacífico, estendendo-lhe a ilusão de que continuava a ser a norma. Tudo se desfez no dia em que o pai chegou mais tarde do quartel com uma grande novidade.

"Parece que os Americanos têm uma bomba que pode destruir o mundo", revelou de ar apreensivo. "Atiraram um desses engenhos e os Japoneses renderam-se."

Uma bomba que pode destruir o mundo? A notícia pareceu-lhe aterradora; sobrepunha-se de longe à informação da rendição dos Japoneses. Caramba, e se eles se põem a despejar essas bombas na primeira ocasião? Será que o mundo vai acabar?

José viveu vários dias com medo até de sair à rua, mas como não havia meio de o fim do mundo chegar e inúmeras coisas exigiam entretanto a sua atenção lá fora, designadamente as aulas na escola e as missas ao domingo, a preocupação foi-se desvanecendo.

Os sintomas de mudança tornaram-se gradualmente visíveis a vários níveis. As habituais discussões em casa dos Branco, suscitadas pela falta de batatas ou pela má qualidade do escasso azeite, começaram a espaçar-se no tempo até desaparecerem por completo.

Amélia deu consigo a gerir com eficiência o pouco que havia; era como se, por artes mágicas, tivesse passado a conseguir com facilidade o que antes lhe parecia impossível.

"Para fazer muito com pouco, não há como eu", exclamou, orgulhosa, à mesa do jantar, numa noite fresca da Primavera de 1947. "Até com uma alfacezita arranjo um rico manjar!"

No entanto, meses depois, a desmobilização do capitão Mário Branco foi o sinal inequívoco de que afinal o mérito não era todo seu. Se calhar, alvitraram as que a ouviam, nem nenhum mérito tinha. Pois não se via já mais comida por toda a parte? A verdade é que por essa altura passou a haver produtos variados no mercado. A situação evoluiu de tal modo que as comissões de racionamento foram extintas pelo governo e o Regimento de Infantaria de Penafiel deixou de ter necessidade dos serviços do marido. O oficial voltou para casa.

De facto, as coisas estavam mesmo a mudar e bastava ler nas entrelinhas de O Comércio do Porto para perceber porquê. O governo tinha pegado no ouro e nas divisas acumuladas nos negócios com os Aliados e os Alemães e pôs-se a adquirir bens de consumo importados do estrangeiro, que depois espalhou em postos de venda a preços tabelados. Quase sem se dar por isso, até porque a evolução para melhor se nota menos do que em sentido contrário, acabou-se o açambarcamento e o mercado negro, ao mesmo tempo que a política de racionamento deixou de ser necessária.

A vida regressou por fim à normalidade, um conceito abrangente para José, capaz de abarcar tudo o que a vida lhe dava; até as dificuldades, que tanto perturbavam os adultos, lhe pareciam naturais. Bem vistas as coisas, é uma prerrogativa das crianças; só elas revelam a surpreendente capacidade de aceitar até o inaceitável. Afinal não conhecem melhor e a tudo se habituam depressa. O mais novo dos Branco não passava ainda de uma criança, é certo, embora desse já os primeiros passos na adolescência.

O fascínio que nutria por Mimicas tornou-se devagar uma paixão. Era como se a sua personalidade se dividisse em duas: havia o José tranquilo, metido nas suas coisas e atento às conversas dos adultos como se o instinto lhe dissesse que tudo o que acontecia no exterior podia ter reflexos na sua vida e por isso devia ser seguido com atenção, mas existia um outro José, o adolescente apaixonado, que vivia para os passeios dominicais com Mimicas e as suas conversas sobre África e o seu cabelo claro aos canudos e o linguajar feito de "coisos" que o divertia e o olhar traquina que o desarmava.

"Já viste isto da bomba cómica?", perguntou logo que a topou num domingo à saída da missa.

"É um estouro, hã?"

Desde que ouvira o pai mencionar a notícia da bomba que fizera o Japão em fanicos que ardia de excitação por tagarelar com Mimicas sobre o assunto. Na verdade falava mentalmente com ela todos os dias e chegava por vezes a convencer-se de que o diálogo assim entabulado era real, mas no fundo tinha consciência de que a única conversa que valia era aquela"que ambos travavam aos domingos a caminho de casa.

"Qual bomba? A que os Americanos coisaram no coiso?"

"Essa. O que me dizes disso?"

A amiga encolheu os ombros, como alheia ao magno problema.

"Nada."

"Nada?", espantou-se José. "Eles agora podem destruir o mundo, Mimicas. Não tens medo?"

Mimicas abanou a cabeça, com aparente indiferença, o que o deixou decepcionado. A vizinha era por norma uma rapariga espevitada e armada de opiniões sobre tudo, mas nessa manhã parecia estranhamente ausente, como se tivesse a cabeça noutro sítio. José já havia surpreendido aquele olhar vazio no rosto da sua própria mãe. Parecia que o corpo se encontrava ali mas a mente tinha partido de viagem, pelo que presumiu que se tratasse de coisa típica de mulheres e não fez grande caso.

Caminharam assim em silêncio, algo pouco habitual entre eles, e foi só quando chegaram à porta de casa que Mimicas quebrou o mutismo.

"Vou-me embora."

"Está bem", suspirou José, acenando em despedida. "Vemo- -nos no próximo domingo."