Mas Mimicas não se mexeu.
"Vou voltar para Cabo Verde."
José caminhava já para casa, mas imobilizou-se a meio de uma passada, como se tivesse embatido numa parede invisível. Virou-se e fitou-a numa interrogação.
"O quê?"
Uma lágrima corria pelo rosto suave da rapariga, grossa e reluzente, como se a saudade a queimasse já com gotas incandescentes de ouro fundido.
"A mamã chamou-me", disse, a voz embargada e um sorriso forçado. "Parto amanhã."
A súbita partida de Mimicas foi um choque de que José talvez nunca se tenha refeito. Foi como se tivesse ficado órfão. Derramou por ela as suas primeiras lágrimas de amor, sem perceber ainda que, a partir daquele instante, seria Mimicas a medida pela qual avaliaria todas as outras.
Passado um primeiro momento de reclusão interior, em que caíra deprimido pelo desaparecimento da amiga, começou aos poucos a emergir do torpor e a canalizar as suas energias para os talentos e interesses que até aí haviam permanecido sublimados. Os primeiros foram os das histórias aos quadradinhos. Começou por ler o suplemento dominical de O Primeiro de Janeiro, que a tia Joana lhe levava para os almoços de domingo, depois da ida à missa, e a seguir passou para O
Mosquito, onde brilhava Luis Ciclón, e O Gafanhoto, cujo principal herói era Cuto.
As histórias aos quadradinhos pareciam um interesse exclusivo de José, mas o mesmo não se podia dizer da escuta da telefonia. A rádio era uma antiga paixão da família, com o pai permanentemente sintonizado na BBC. Quando a estação britânica não estava no ar, no entanto, as preferências de toda a gente em casa voltavam-se sobretudo para a Emissora Nacional, embora, aqui e ali, experimentassem a Rádio Porto ou o Rádio Clube Português.
Amélia e as duas filhas, às quais se juntava ainda Beatriz, consideravam sagrada a hora em que passava mais um episódio de As Pupilas do Senhor Reitor; já os rapazes preferiam a galhofa dos
Diálogos da Lelé e da Zequinha e de A Parada da Paródia, sem esquecer, claro, o velho O Senhor Doutor, que brilhava no Rádio Clube Português aos domingos e seguia o êxito da revista juvenil. O
ponto alto deste programa eram os diálogos entre o menino Tonecas e o professor, conversas repletas de absurdos que desencadeavam gargalhadas em cascata por toda a casa.
"Menino Tonecas", começava a voz que jorrava pela rádio. "Diga o que descobriu Cristóvão Colombo."
"Descobriu um ovo, senhor professor."
Foi também pela rádio que José se tornou um apaixonado do fado. Na altura as grandes estrelas eram Amália, Hermínia Silva e Ercília Costa, embora o mais novo dos Branco, devido à influência do irmão mais velho, que suspirava por estudar em Coimbra, apenas se interessasse pelo fado cantado por vozes masculinas. Talvez por afinidade etária, a verdade é que começou por apreciar sobretudo o estilo de Fernando Farinha, o Miiído da Bica, embora depressa a sua atenção se tivesse transferido para o grande Alfredo Marceneiro e o seu desconcertante fado castiço.
Começou por ouvir Marceneiro na telefonia; interessou-se por aquela voz atrevida e passou a segui-la, acompanhando os comentários nos jornais e nas revistas e vendo alguns imitadores do estilo que por vezes apareciam em Penafiel para um espectáculo. Empenhado em emular o seu ídolo, José vestia-se de preto e apertava um lenço colorido ao pescoço; era assim arranjado que se punha, às escondidas, diante do grande espelho do armário do quarto dos pais e, de mãos nos bolsos e estilo gingão, cantava A Casa da Mariquinhas e outros grandes êxitos do momento.
E numa rua bizarra A casa da Mariquinhas Tem na sala
uma guitarra E janelas com tabuinhas.
Ouvia as letras e a melodia na telefonia, começava por trauteá- las baixinho e, mal ganhava confiança, punha-se a cantá-las em voz alta. A verdade é que decorava tudo com facilidade espantosa.
Numa tarde de preguiça, vivida na cadência pachorrenta das longas horas cinzentas em que tudo parece adormecido, o pó flutua no ar e o passar do tempo é pautado pelo tranquilo tiquetaque cadenciado do grande relógio da sala, José foi atraído por estranhos sons vibrantes que de repente rasgaram o silêncio e encheram de vida a pasmaceira. Ergueu a cabeça e localizou a sua origem; vinham do quarto das irmãs. Eram tlins titubeantes e tlãos que cambaleavam, sons trôpegos que aparentavam ir numa direcção e depois paravam, indecisos, até darem mais um passo noutro sentido e voltarem a tropeçar, num gaguejar hesitante, irresoluto, como se estivessem ébrios e caminhassem aos trambolhões.
Aproximou-se, intrigado, e encontrou a Mana sentada numa cadeira, as pernas cruzadas, de guitarra na mão e uma pauta diante dos olhos. Aprendia a tocar guitarra. O rapaz parou por ali, encostado à porta, debaixo da ombreira, a observar a irmã com atenção, perscrutando a estranha pauta, namorando as curvas voluptuosas da guitarra sensual, sentindo os sons que vibravam nas cordas e lhe ressoavam no peito, sofrendo com a dor suportada pelo instrumento em mãos tão inexperientes, a dimensão da angústia a estremecer no fluxo vacilante das notas musicais que a rapariga arrancava com hesitação. Permaneceu assim a observá-la, calado, mergulhado num misto de placidez e tumulto, o coração a pulsar ao ritmo vertiginoso de sensações contraditórias, fascinado pelas delícias dos timbres, agastado pela forma crua como a guitarra era maltratada.
Sentiu ganas de interrompê-la, mas não se atrevia a fazê-lo.
"Que queres?", perguntou enfim a rapariga com irritação, após falhar mais duas notas. Fixou nele o olhar, numa expressão de censura. "Não vês que me estás a desconcentrar?"
"Desculpa."
Mana suspirou e pousou a guitarra no regaço, enchendo-se de paciência.
"Então o que queres tu? Passa-se alguma coisa?"
José encolheu os ombros.
"Nada, Mana. Estava só a ouvir-te."
"Ah", corou. "Achas que toco bem?"
O mais novo sorriu.
"Nem por isso." "Oh!"
"Uh... não tocas mal", apressou-se a esclarecer, diplomático, preocupado em não ofender a irmã.
"O problema é que a Mimi é muito melhor."
Mana riu-se. Mimi era uma pequena cantora do programa infantil do Rádio Clube Português, um verdadeiro êxito junto da pequenada.
"Pudera! A Mimi é... é uma artista."
"Eu era capaz de tocar como a Mimi."
A irmã voltou a rir-se.
"Pateta! A Mimi não toca, só canta. Quem toca são outros, percebes? Estão atrás a tocar viola e a Mimi acompanha-os com a voz."
"Então eu toco como os outros. Eu toco e tu cantas. Que tal?"
"Mas tu alguma vez tocaste?"
"Eu não."
"Então como sabes que tocas?"
"Sei."
Mana fez um gesto com as mãos, a chamar o irmão.
"Anda cá", disse. Bateu com a palma da mão no joelho, convidando-o a sentar-se ao seu colo.
"Vamos lá a ver se tocas ou não tocas."
José acomodou-se sobre a perna da irmã e começou por dedilhar as cordas da guitarra. Ao fim de alguns minutos a ensaiar sons, arrancou da guitarra a primeira sequência melódica, um extracto da banda sonora de E Tudo o Vento Levou, o filme que fizera furor poucos anos antes, no tempo da guerra, com Clark Gable e Vivien Leigh. O efeito foi tão surpreendente que Mana desatou a bater palmas.