"Ena!", exclamou. "Temos artista!"
A irmã passou uma hora a ensinar-lhe acordes, e em particular a forma como devia pegar na guitarra. Quis mostrar-lhe como ler as pautas, mas essa parte não lhe interessava. A exemplo da generalidade das pessoas naturalmente talentosas, José era preguiçoso; apenas se empenhava no que o divertia, e ler ou escrever pautas não constituía, definitivamente, a sua ideia do que seria uma tarde bem passada.
Começou a procurar música por toda a parte onde ia. Além de se interessar pelas canções na telefonia, acompanhava a família nos passeios de Verão até ao centro da cidade. A banda de Infantaria 6 juntava-se às quintas e aos domingos para um concerto animado no coreto. José não perdia uma sessão, mas preferia os ternos de fanfarra das quintas-feiras, sobretudo fascinado pelo espectáculo dos corneteiros e dos bombos a tocarem a recolher. Em casa, e uma vez que Mana monopolizava a guitarra, agarrou-se a um velho bandolim do pai, que aprendeu a tocar sozinho.
Depois lançou-se num novo desafio, o de um desafinado piano guardado no escritório sob uma fina camada de poeira. Ignorou a sujidade e atacou as teclas com entusiasmo, cantando em altos berros sentidas árias napolitanas, muito populares na Emissora Nacional, em particular a mais velha e romântica de todas.
Ma riatu sole Cchiu' bello, ojè O sole mio Sta
'nfronte a te!
O sole, o sole mio Sta 'nfronte a te! Sta 'nfronte a
te!
Quando deu por ele, já tinha toda a família em redor, embasbacada com aquele talento emergente a cantar O Sole Mio. Não havia dúvidas, o rapaz tinha ouvido para a música.
"Um artista!", concluiu o pai.
José Branco até podia ser um artista, mas com o tempo revelou-se sobretudo um artista da paródia. Depois da primária foi fazer o secundário para o Colégio do Carmo, onde se tornou amigo de outro folião, o Justino. Passavam as tardes juntos a inventar brincadeiras, em particular as relacionadas com os grandes eventos desportivos da época.
Vivia-se o período dos emocionantes duelos sobre rodas entre José Maria Nicolau, do Benfica, e Alfredo Trindade, do Sporting, cuja acérrima rivalidade era acompanhada através dos relatos galvanizantes da rádio. Recorrendo ao seu talento natural, José desenhava os ciclistas em folhas de cartolina, que Justino recortava com uma tesoura e pintava, de vermelho ou riscas horizontais verdes e brancas, consoante as equipas dos velocipedistas; as figurinhas eram depois dobradas pela base, de modo a aguentarem-se em pé, e serviam para fazer corridas pelo soalho do sótão, José com a bicicleta de Nicolau, Justino com a de Trindade. Tanto se ligaram às duas figuras que, inevitavelmente, o mais novo dos Branco se tornou adepto do Benfica, enquanto o amigo ficou simpatizante do Sporting.
Como é bom de ver, a rivalidade e as brincadeiras estenderam-se ao futebol, embora, por estranho que possa parecer, no início se tenham interessado mais pelos clubes brasileiros. O que tem uma explicação. O tio de José, irmão do capitão Branco, havia emigrado para o Brasil aos quinze anos e tornara-se atleta do Clube de Regatas Vasco da Gama, a agremiação dos portugueses que viviam no Rio de Janeiro. Chamava-se Adão, mas todos o conheciam por Tuja, e entrou na história do futebol brasileiro por ser o primeiro jogador a marcar um golo com as cores do Vasco da Gama, feito que enchia de orgulho todos os parentes de Penafiel. Ciente do seu estatuto de estrela desportiva da família, o tio Tuja enviava regularmente jornais cariocas com informações sobre o futebol brasileiro, em particular sobre o glorioso Vasco da Gama, e também cromos onde figuravam as principais vedetas da bola - entre as quais ele próprio, claro.
Os dois rapazes pegaram nesses cromos e colaram-nos em cartolina para os recortar de seguida, segundo o mesmo método que utilizavam para as bicicletas. Depois de assim fabricarem os jogadores, passaram aos jogos, sempre disputados no sótão, o lugar mais quente da casa. Todas as tardes estendiam uma grande cartolina verde no chão, as linhas do campo de futebol desenhadas a rigor, e disputavam emocionantes partidas entre os dois, com um botão a servir de bola.
As estrelas do Vasco da Gama, cujas cores José defendia sempre com galharda valentia, eram o guarda-redes Barbosa e o temível avançado Ademar, embora a principal figura da equipa fosse, como parece inevitável, o grande Tuja, o maior goleador do campeonato brasileiro que se disputava na casa dos Branco, em Penafiel. Justino, por seu turno, assumia o comando do Olaria, clube que contava com uma mão-cheia de craques de nomes bizarros, entre os quais pontificavam Juraci, Marmurato, Bilulu, Sula, Januário e Adalto, todos eles correspondentes a futebolistas que de facto alinhavam por aquele clube - pelo menos a acreditar nos cromos enviados do Rio de Janeiro pelo tio Tuja.
Mas não eram só as estrelas brasileiras que alimentavam as paixões futebolísticas do miúdo.
Iniciado neste desporto pelos cromos remetidos pelo tio Tuja, o mais novo dos Branco começou a interessar-se também pelos clubes da terra. Havia dois em Penafiel, o Sport, que alinhava de preto e vermelho e era o emblema dos comerciantes e dos doutores, e o União, a equipa de verde e branco, que colhia a preferência das camadas mais populares. Uma vez que o Sport ostentava vermelho na camisola, José pendeu para este lado, enquanto, pelo mesmo motivo, Justino preferia o União.
Como não podia deixar de ser, esta paixão pelo futebol rendeu a José mais uns pecaditos para confessar ao padre Augusto, benefício que não era de desprezar. A maior parte das vezes, os pequenos delitos que ia amealhando paulatinamente no seu pecúlio pecaminoso tinham a ver com palavras exaltadas que, no calor da refrega, o rapaz dirigia aos jogadores adversários e até, pasme-se, ao distinto árbitro, incluindo referências despresti- giantes às respectivas mães, senhoras cuja reputação e idoneidade moral o pequeno ocasionalmente punha em causa.
Mas houve uma vez que o delito saiu desta esfera relativamente inocente e se tornou assunto de conversa indignada entre as mulheres da família e as beatas que frequentavam a missa. Jogava-se num domingo de Março um muito esperado Sport- União, partida que a equipa de vermelho se mostrava ansiosa por disputar: afinal tinha de se vingar de uma recente humilhação aos pés do eterno rival. O problema é que Amélia proibiu o excitado José de assistir ao grande embate do ano, com o enervante pretexto de que o filho não podia faltar ao terço.
"Deus é mais importante do que a bola", argumentou a mãe, pondo um ponto final nas súplicas insistentes do pequeno. "Está decidido e não se fala mais nisso!"
José lá partiu para a igreja com ar contrariado. Uma hora depois, Amélia saiu à rua para subir, também ela, ao Sameiro; queria oferecer uma esmola para pagar uma promessa que fizera dias antes. Cruzou-se no jardim, na ponte sobre o lago, com dona Idalina, que cumprimentou de modo acalorado; eram velhas conhecidas da igreja.
A dado ponto da conversa, quando indagada sobre o que fazia ali por essas horas, dona Idalina explicou que vinha do terço, o que levou Amélia a questioná-la sobre o filho, bom rapaz, que também para lá fora em cumprimento das suas obrigações religiosas.
"Ai sim?", admirou-se Idalina com malícia. "Não o vi por lá."
"Pois", devolveu Amélia. "Devia estar no meio da multidão, coitadinho."
"Qual multidão? A igreja estava vazia..."
"Vazia?"
"Sim."
"E não o viu?", admirou-se Amélia. "Ele é muito piedoso, vai sempre para a primeira fila..."