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"Preciso de estudar."

Amélia admirou-se com o empenho do seu mais novo, nunca o havia visto tão dedicado aos estudos, mas o facto é que não tinha objecção a levantar a tão louvável comportamento e chegou mesmo a fazer dele um exemplo para os irmãos.

"Estão a ver o Zezinho?", passou a perguntar aos outros filhos sempre que com eles saía à rua.

"A estudar assim, ainda há-de ser alguém na vida!"

José estudava, é verdade, embora a matéria se centrasse exclusivamente nas animadas sessões de anatomia feminina.

Foi com a fogosa criada que o adolescente descobriu alguns dos mais importantes segredos do corpo humano e se iniciou na vida adulta. Embora ainda doce, a paixoneta juvenil por Mimicas não passava já de uma lembrança, de um passado de inocência que a voragem do tempo enfim tragara.

A pureza de José partira com a sua amiga dos cabelos aos canudos, deixando-lhe a alma entregue ao monstro que Maria Imaculada despertara.

"Já sabem da novidade?"

A pergunta foi feita por Lourdes certa manhã, quando os irmãos saíam de casa para as aulas.

Como António seguira já para a universidade, José preparava-se para ir sozinho para o Colégio do Carmo e as raparigas para caminhar de mão dada até às soeurs, umas freiras que durante a guerra de Espanha haviam fugido para Portugal e aberto uma escola numa grande vivenda atrás do Sameiro.

"O quê?"

"A Beatriz chega hoje."

O anúncio deixou José tão consternado que as irmãs julgaram que lhe ia dar qualquer coisa em plena rua. Cambaleou e teve de se sentar no passeio diante de casa. Pensaram que fosse a comoção pelo regresso da criada, longe de imaginarem a verdade desconcertante. Apenas José sabia que, se o coração fraquejara, não fora de alegria pela fiel Beatriz, mas já de saudades da infiel Maria.

As novidades confirmaram-se logo nessa tarde, quando José regressou do colégio e constatou que Beatriz estava já ao serviço. Espreitou o quarto ao lado da cozinha e, com o coração em sobressalto, verificou que eram agora as roupas da antiga empregada que ocupavam as gavetas.

Procurou sinais da sua amante secreta, mas não os encontrou. Angustiado, de olhar perdido, imaginando o pior, arrastou-se até à mãe e, esforçando-se por aparentar a maior das indiferenças, indagou por Maria Imaculada.

"Foi ao Pacheco buscar arroz", foi a resposta apática de Amélia, que tricotava umas malhas junto à lareira. "Porquê?"

Não era decididamente a resposta de que o rapaz estava à espera.

"A... à mercearia do Pacheco? Quer dizer que... que não se foi embora?"

"Por causa do regresso da Beatriz? Não, fizemos as contas e decidimos mantê-la. A casa é muito grande e a Beatriz não dá conta do recado, coitada. Está agora encarregada da cozinha e das roupas e a Imaculada fica com as limpezas e as compras." A mãe parou por momentos de tricotar e ergueu o olho desconfiado. "Mas porquê?"

Sentindo-se subitamente dissecado por aquele olhar penetrante, José afastou-se de imediato, num esforço para ocultar o rubor de alívio que lhe coloria as faces.

"Era só para saber."

Os algarismos brancos rasgavam a superfície negra da ardósia, pareciam pinceladas secas de pó, e José suspirou de frustração. A conta não dava certo. Passou a mão irritada pela lousa e desfez os algarismos num borrão esbranquiçado; teria de recomeçar o exercício de matemática do princípio e só quando a computação batesse bem é que a transcreveria para o caderno. Pegou no giz e rabiscou os números e o símbolo da raiz quadrada.

Quando começou a acrescentar à equação os dados seguintes ouviu o soalho ranger e voltou-se para trás. Destrinçou uma sombra a esgueirar-se pelas escadas em direcção ao rés-do-chão, como se um espectro líquido se derramasse pela casa, e percebeu que era Maria Imaculada a descer para o quarto que lhe fora destinado desde o regresso de Beatriz. A imagem excitou-lhe a imaginação, sobretudo depois do susto que fora a possibilidade de a perder. Vê-la baixar para os aposentos fê-

lo ansiar pelo calor dos seus lábios trémulos, pelo veludo da sua pele palpitante, pelo ofegar alvoroçado da respiração quando colava o corpo ao dele, pela humidade quente das suas entranhas femininas, pela sensação trémula de transgressão do proibido.

Tinha de a possuir. E quanto mais depressa melhor.

Foi por isso que nessa noite, mal sentiu a casa aquietar-se, saltou da cama e calcorreou os degraus literalmente em bicos de pés, deslizando pela escadaria até ao rés-do-chão. Lançou a manobra talvez um pouco cedo de mais, antes fazia-o mais tarde para garantir que o sono da família era profundo, mas sentia-se consumido pela impaciência e pela ânsia de soltar a tensão que o estrangulara durante o dia. Afogado em desejo, não conseguiu aguardar todo o tempo que a prudência aconselhava.

O chão do piso térreo não era um soalho de madeira, como acontecia nos andares superiores, mas granito. Estava escuro em toda a casa e foi quando sentiu sob os pés nus a superfície fria da pedra polida que soube que havia chegado. Da esquerda veio-lhe o aroma a mosto da adega, mas José meteu à direita pelo corredor, a mão a deslizar pela parede até sentir a primeira porta. Era o quartinho situado ao lado do escritório do pai e para onde Maria Imaculada fora enviada.

Empurrou devagar a porta e mergulhou a cabeça naquela treva opaca que o envolvia como um manto denso e impenetrável.

"Maria", chamou. "Estás aí?"

Sentiu a cama ranger com um movimento.

"Menino Zezinho?"

Já a tiritar de frio, o rapaz deslizou para a cama e foi acolhido pelos braços quentes da empregada. Um cheiro intenso a lixívia e sabão impregnava Maria Imaculada, mas José ignorou o odor forte e deixou-se envolver pela pele sedosa e pelo calor acolhedor de mulher. Mergulhou nela com ímpeto, incapaz já de se conter, mas deteve-se ao fim dos primeiros impulsos, quando escutou um barulho suspeito.

"Que é isto?"

"É a cama", sussurrou ela de volta. "Chia."Riram-se baixinho. A cama, ao contrário da que antes lhes sustinha as refregas amorosas, tinha molas enferrujadas e chiava a cada movimento. Mas os amantes sentiam-se demasiado empolgados para se preocuparem com esses pormenores e recomeçaram a sua dança, unindo-se num movimento sincronizado, enlaçados um no outro, tão esfaimados e gulosos que perderam toda a noção de quem eram e de onde estavam e libertaram os sentidos numa explosão lasciva descontrolada. "Zé!?"

Não conseguiam parar, eram como uma composição em marcha, a locomotiva a acelerar num movimento cadenciado, o taquetaque dos carris transformado no tumba-tumba dos corpos, a chaminé a exalar gemidos e suspiros em vez de fumo, a carne a arder no lugar do carvão. "Zé!"

À segunda vez que a voz cortou o ar, os amantes estremeceram e imobilizaram-se. José viu sombras a bailar na parede e apercebeu-se de que o clarão azulado de um candeeiro de petróleo balouçava no quarto. Foi só nesse instante que registou a voz de homem que atrás deles chamara o seu nome. Estavam a ser observados. Sentiu a rapariga esticar o pescoço, espreitar-lhe sobre o ombro na direcção da voz e soltar um grito de pânico. José virou então a cabeça e reconheceu o rosto que os observava da ombreira da porta.

"Pai!?"

O tiquetaque hipnótico do relógio de parede, tranquilo e pendular, pontuava o ambiente morno e sereno que envolvia o escritório. Rostos a preto e branco enquadrados em molduras e eternizados a sépia no clichet esmerado da Foto Anthony contemplavam a cena com expressões justiceiras, como testemunhas silenciosas a vigiá-los do passado. O pó pairava com preguiça diante dos clarões de luz, tão suspenso como o ar, e apenas o pirilampejar agitado da lamparina de petróleo, cuja chama azulada projectava silhuetas irrequietas nas paredes, conferia vitalidade nervosa àquela salinha perpetuada no tempo.