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Havia já alguns anos que o capitão Mário Branco não chamava um filho ao gabinete para lhe passar uma reprimenda. Afinal todos eles já tinham crescido, António tirava Direito em Coimbra e as raparigas terminavam os estudos nas soeurs. Sempre acreditara que os valores que lhes inculcara desde crianças garantiam que os filhos saberiam estar à altura das suas responsabilidades enquanto cavalheiros e senhoras de bem, mas ainda assim tinha a consciência de que poderiam ocorrer situações que requeressem a sua intervenção, e o facto de ter o mais novo sentado naquele instante diante dele era prova disso.

"Costumas pôr o anel?"

A pergunta do capitão fez José erguer o olhar envergonhado e lançar na direcção do pai uma expressão interrogadora.

"Perdão?"

O capitão levantou a mão esquerda e indicou o anel de ouro que lhe cintilava no dedo.

"Lembras-te de uma vez te ter dito que a prova de carácter de uma pessoa é feita através do teste do anel?", perguntou. "Torna-te invisível e faz o que farias se ninguém te pudesse ver. E assim que se pode avaliar o carácter de alguém. Tens posto esse anel?"

O filho remexeu-se na cadeira, inquieto, e voltou a baixar os olhos.

"Não fiz nada de mal", murmurou. "Não roubei, não enganei, não faltei a nenhum dever."

"Então porque estás com ar envergonhado?"

"Porque o pai me apanhou com ela", retorquiu com um leve tremor do corpo, como se o sucedido naquele instante fosse demasiado penoso para ser discutido. "Mas o que estávamos a fazer não era mal nenhum. Tratava-se de uma coisa entre mim e ela, feita de livre vontade. Em que é que isso prejudica quem quer que seja?"

"Achas que não foi nada de mal? Aqui em nossa casa? Com a empregada? Como pensas que eu e a tua mãe nos sentimos?"

José voltou a estremecer, assaltado pela memória do embaraço que vivera naquele momento de suprema humilhação, e encolheu-se ainda mais na cadeira.

"Se calhar devia ter tido mais cuidado, admito-o. Insisto, no entanto, que não quis prejudicar ninguém. Posso ter sido descuidado, mas não fiz por mal. Além do mais, o que faço com o meu tempo livre é comigo e não tem relação com as outras coisas."

"Achas que não?"

"Claro que não."O pai tamborilou pensativamente os dedos na secretária, como se acariciasse as teclas de um piano invisível para lhe arrancar as notas lhe soavam em pensamento.

"Diz-me, Zé: o que é ser uma pessoa boa?"

O filho pestanejou, tentando coordenar os pensamentos e entender o verdadeiro alcance da questão. Maria Imaculada havia sido sumariamente despedida e esperava que também a ele lhe fosse aplicada uma sanção, mas aquela pergunta não parecia encaminhá-lo nesse sentido. Concluiu que talvez o melhor fosse deixar-se guiar pelo pai.

"É alguém que pratica o bem, suponho."

"Sim, mas o que é o bem?"

Onde quereria o pai chegar?, interrogou-se. Intuiu que as perguntas levavam uma direcção, mas como não a conseguia descortinar com rigor preferiu jogar pelo seguro e manter-se à defesa.

"É... é ajudar os outros, é ser honesto...", titubeou, as palavras a faltarem-lhe. "Enfim, é... é uma série de coisas."

O rosto do capitão abriu-se num sorriso surpreendentemente suave e amigável, mas sempre a evitar a condescendência.

"Todos nós conseguimos reconhecer o bem com facilidade", observou. "Mas já viste como é difícil defini-lo? O que é o bem? E incrível como um conceito tão simples se revela tão difícil de expressar, não é?"

"Bem... sim."

O pai olhou em redor e fixou a atenção numa fotografia pousada no canto da secretária, perpetuando a imagem granulada de um homem de bigodes e ar austero e de uma mulher com expressão serena e o cabelo apanhado sobre a nuca.

"Estás a ver esta fotografia antiga dos meus pais? O que tem ela de comum com... com..."

Apontou para um livro com a capa desbotada que se encontrava na estante ao lado da porta. "Com este livro antigo? A resposta é: são ambos antigos." Indicou o soalho e depois a sua própria secretária. "O que têm de comum o chão de madeira e esta mesa de madeira? A resposta é: são ambos de madeira." Inclinou-se para a frente, sinalizando assim a importância da pergunta seguinte. "E o que têm de comum um bom livro, um bom sapato, um bom vinho e uma boa pessoa?"

Deixou a pergunta marinar na mente do filho.

"São todos bons, acho eu", devolveu José.

"Sim, mas o que é isso de serem bons? São bons da mesma maneira que o chão e a mesa são de madeira?"

"Bem... não."

"Claro que não. A dificuldade em definir o que é uma coisa boa é enorme. O que é uma coisa boa? O que é o bem? O que é o mal? Como sabemos que uma coisa está certa e outra está errada?

Por que razão mentir é errado? E é sempre errado, em todas as circunstâncias? E tu andares a... a ter contactos carnais? E errado? Se não é errado, isso quer dizer que está bem? Quem define o certo e o errado?"

As perguntas foram metralhadas em catadupa, cada uma tão insolucionável quanto a outra, todas tão simples e tão estranhamente complexas que José teve dificuldade em decidir a qual deveria responder primeiro, e duvidou mesmo que houvesse respostas a dar. Sentiu uma súbita vontade de conhecer depressa a sua punição e sair dali, mas conteve-se. Se o pai lhe falava assim, lá teria as suas razões. Matutou por momentos nas perguntas que lhe foram feitas.

"Talvez seja Deus", arriscou. "Só Ele pode definir o que é o bem e o mal."

Ao escutar a referência a Deus, o pai sorriu com um toque de amargura a manchar-lhe a expressão.

"Isso é o que diria a tua mãe!...", observou. "Há muita gente, como por exemplo ela, que acredita que a moral tem origem em Deus. Não foi o Senhor que nos deu os dez mandamentos? O que são os mandamentos senão regras de boa conduta? Não matarás, não roubarás, não cobiçarás a mulher do próximo... Quem negará que estas ordens apontam o caminho do bem? Uma pessoa que não mate, que não roube, que não engane, que ajude o próximo, que defenda os oprimidos é de certo uma pessoa boa. Ser bom é então comportar-se de acordo com os mandamentos de Deus. Ser mau é actuar de forma contrária a essas ordens. Assim sendo, dirias que o teu comportamento com essa rapariga foi correcto?"

Então era ali que o pai queria chegar, pensou José. Na verdade nunca tivera dúvidas sobre isso.

Não fora afinal por causa do incidente da noite anterior que para ali havia sido chamado? Mas o pai era sábio, percebeu. Em vez de usar a força bruta, confrontava-o com os seus actos.

"Incorrecto não foi", argumentou, disposto a dar luta. "Não matei ninguém, não roubei, não cobicei a mulher de outro..."

"Olha que um dos dez mandamentos de Deus é não pecar contra a castidade", lembrou o capitão. "Mas, mesmo aceitando que não pecaste contra a castidade, porque se calhar já nem eras casto, e ela também não, achas que o teu comportamento foi correcto?"

O filho respirou fundo, incapaz de responder directamente à pergunta. Apesar de o mandamento mencionado pelo pai existir realmente, sentia que não havia sido incorrecto. Mas seria isso sinónimo de que tinha sido correcto?

"Se Deus me fez com desejo de mulheres é decerto porque quis que eu desejasse as mulheres", retorquiu, contornando de novo a questão. "Aceito que tenha desobedecido a uma convenção social, mais nada."

"É interessante que não consigas dizer explicitamente que o teu comportamento ali no quarto foi correcto", notou o pai. "O que mostra que a moral de Deus está em ti. De qualquer modo, é verdade que há pessoas que nem acreditam em Deus e, no entanto, são boas e correctas. Isso prova que a moral está para além de Deus. Mas, se a noção de bem e de mal não vem de Deus, vem de onde?"