Era uma boa observação e deixou José pensativo. O pai tentava mostrar-lhe que se comportara de forma indigna, mas disso não tinha ele a certeza.
"Não acha que isto é tudo um pouco relativo?"
"Claro que é relativo", concordou o pai, levantando o dedo para acrescentar mais um adjectivo.
"A moral é relativa e subjectiva. Se eu matar uma galinha para comer, isso é bom para mim e mau para a galinha. Ou seja, uma coisa pode ser boa e má ao mesmo tempo de um ponto de vista relativo." Apontou para o livro que se encontrava na estante e que mencionara minutos antes. "Por outro lado, eu posso achar que aquele livro é muito bom e tu que ele é muito mau. Isto é outra maneira de uma coisa ser boa e má ao mesmo tempo, embora aqui de um ponto de vista subjectivo.
Portanto, o conceito de bom e de mau é ao mesmo tempo relativo e subjectivo."
"Isso mostra que não há um bem absoluto."
"Não necessariamente", corrigiu o capitão. "O facto de a moral poder em certas circunstâncias ser relativa e subjectiva não quer dizer que seja arbitrária. Há uma certa universalidade em determinados preceitos. Não matarás, por exemplo. Este mandamento divino pode ser encontrado em todas as culturas, mesmo nas mais pagãs. O assassínio é errado na nossa cultura cristã, mas também na cultura de uma tribo de índios da Amazónia ou entre os bosquímanos da Africa do Sul.
O mesmo se passa com a proibição de fornicar."
A referência implícita ao sucedido na noite anterior envergonhou José, que baixou a cabeça.
Passou a mão pelo cabelo e coçou a nuca, como se isso o ajudasse a limpar-se.
"O pai acha que estou possuído pelo mal?"
"Não tenho respostas finais para o problema do bem e do mal", disse o capitão, sorrindo com a pergunta. "A única coisa que te posso dizer é que te deves guiar pela consciência. Não te quero julgar pelo que aconteceu ontem à noite ali no quarto nem tenho a certeza de que tenhas realmente feito algo de mal. Quero apenas explicar-te que, ao longo da tua existência, espero que sejas uma pessoa boa. Na vida vais decerto encontrar situações difíceis e dilemas dolorosos. Nem sempre a solução mais fácil é a melhor. Por vezes temos de escolher entre um mal que nos facilita a vida e um bem que nos dificulta tudo. Escolhe sempre o bem."
"Mesmo que isso me prejudique?"
O capitão Mário Branco apoiou os cotovelos na mesa e juntou as palmas das mãos, colando os lábios às pontas dos dedos numa pose judiciosa, como um juiz a ponderar uma sentença.
"Se o bem fosse fácil, meu filho, só haveria homens bons."
A frase foi proclamada num certo tom final, como se aquilo fosse tudo o que o pai tinha para lhe dizer sobre o assunto, e José depreendeu que lhe havia sido dada a deixa para se retirar e quase suspirou de alívio. Não tinha sofrido nenhum castigo, mas o pai pusera-o a pensar. Empurrou a cadeira para trás e fez tenções de se levantar.
"Se me dá licença, pai, eu ia então..."
O capitão endireitou-se com um movimento rápido.
"Onde vais?"
O rapaz imobilizou-se, percebendo que talvez se tivesse precipitado.
"Bem, eu... enfim, ia a... a..."
"Senta-te."
José voltou ao seu lugar e ficou a ver o pai desdobrar uma folha de papel que extraíra de um envelope. O capitão passou os olhos pelo conteúdo da folha e torceu a boca de uma forma característica, como fazia sempre que se sentia desagradado com algo. Que mais viria aí? Um castigo? Teria toda aquela conversa sobre o bem e a necessidade de tomar as decisões certas sido apenas um prelúdio a algo de bem pior? A mente do rapaz encheu-se de possibilidades terríveis enquanto o pai não abria o jogo.
O capitão Branco suspirou, como se se preparasse para ir enfim directo ao assunto, e estendeu-lhe o papel.
"Estás a ver isto?"
Com as mãos quase a tremer, o filho pegou na folha e leu as primeiras linhas.
"São as minhas notas!..."
"E não são bonitas", atalhou o pai. "Foste varrido a dez e onze, com um oito a Francês."
"Mas tenho dois dezoitos..."
"Ora, a Música e a Desenho! Não tenho nada contra as artes, mas que eu saiba neste país ninguém vive delas." Voltou a suspirar, como se se sentisse impotente. "O que vamos fazer de ti, rapaz?"
"Não se preocupe que eu cá me desenrasco."
"Antes fosse assim. Mas a vida não é uma paródia e o mundo é um sítio difícil." Exalou um suspiro longo e resignado. "Estive a falar com o doutor Matias, lá do banco, e ele disse-me que estava justamente à procura de alguém que o ajudasse ao balcão. Penso que é uma excelente oportunidade para..."
"O pai quer trancar-me num banco?", cortou José.
O capitão Branco não estava habituado a ver um filho interrompê-lo quando falava, mas condescendeu. Considerando a importância e a delicadeza do assunto, era natural que o rapaz se sentisse nervoso.
"Olha-me para essas notas, Zé", sugeriu, indicando a folha de papel. "Não vais a lado nenhum com classificações destas."
"Mas para um balcão não quero ir."
"Então vais para onde? Que queres tu fazer?"
O filho fitou por momentos a chama azulada que dançava no topo do candeeiro a petróleo, como se estivesse hipnotizado e o baile do lume bruxuleante encerrasse o oráculo do futuro, embora fosse por uma promessa do passado que a sua mente deambulava - a promessa que um dia fizera à sua amiga do cabelo aos canudos quando soube que o pai lhe tinha morrido porque não havia um médico na zona de Africa para onde fora.
"Quero tirar Medicina."
A afirmação pareceu tão extraordinária que o pai se engasgou e foi assaltado por um ataque de tosse repentino. Levou alguns segundos a recuperar a compostura.
"Deves estar a brincar", disse quando recobrou o fôlego. "Tu? Médico?"
"Sim."
"Mas tens a noção do trabalho e do nível de exigência que envolve o curso de Medicina?" Voltou a indicar a folha com as classificações. "Se no liceu já é esta... esta desgraça, imagina o que seriam as tuas notas a Medicina! Nem pensar! Seria uma pura perda de tempo e de dinheiro!"
"Mas o pai não quer que eu seja uma boa pessoa e dê uma direcção produtiva à minha vida?"
O capitão hesitou ao ver posta assim a questão, sobretudo à luz de tudo o que havia dito desde o início da conversa.
"Quero, claro."
José dobrou cuidadosamente a folha e estendeu-a na direcção do pai, a face a irradiar um sorriso luminoso e confiante.
"Então deixe-me inscrever em Medicina", exclamou. "Prometo-lhe que serei um homem bom."Os nove estudantes acercaram-se da cama onde o lençol escondia o corpo debilitado do paciente, um velho de rosto ossudo e olhar macilento. Toda a enfermaria exalava um odor característico a éter, mas apesar disso mantinha um certo ar alegre, talvez devido ao sol que invadia as grandes janelas e espalhava pelo chão geometrias luminosas, quadrados de luz que se recortavam como um gigantesco tabuleiro de xadrez.
O professor aproximou-se do paciente com movimentos titubeantes e os estudantes abafaram risadinhas antecipadas.
"Coitado do velho", alvitrou alguém ao ouvido de José. "Acho que não vai entender patavina!..."
O "velho" era o doente que se preparava para enfrentar o professor Ribeiro, cujas aulas de Neurologia e Infecto-Contagiosas eram famosas na Faculdade de Medicina pela dificuldade com que o docente se exprimia, sempre em busca de palavras que lhe escapavam e substituindo-as amiúde por gestos de impotência.