Como a confirmar a expectativa de que se seguiria um diálogo absurdo ao nível da pantomina das aulas, o professor encheuo peito de ar para falar mas só lhe saiu um grunhido, acompanhado por um movimento inconsequente dos braços, e logo algumas risadinhas, antes abafadas, se tornaram audíveis. Ignorando o burburinho, o professor Ribeiro voltou à carga e após um novo esforço lá saiu a pergunta.
"De que se queixa?"
Novas risadinhas; tanto esforço para soltar pergunta tão simples era de facto cómico.
"Ó sô'tor", disse o paciente num cerrado sotaque portuense, "fico à rasca p'ra mijar, carago."
As risadinhas tornaram-se gargalhadas, cortadas pelo olhar fulminante do professor. Os alunos reprimiram o riso e o docente voltou a concentrar-se no velho.
"Tem dores nas costas?"
"Ai, teinho teinho, sô'tor. É uma arreliaçon. Às bezes até me cust'a andar, c'um caneco. Ainda onte beio cá a minha Graziela, 'tadinha, traz-me sempre o farnel, é uma sánta aquela mouça, e um pito 'inda por cima, e atão ela biu-me assim com'um tinhoso e disse: ó home, bê s'andas como gente, canudo, pareces o estafermo d'um marreco!"
O professor encarou o grupo de alunos.
"Diagnóstico?"
Os esgares divertidos morreram e os olhares dos estudantes pareceram ficar desfocados. José ainda considerou a possibilidade de inventar uma infecção na bexiga, afinal estavam numa aula prática de Neurologia e Infecto-Contagiosas, mas não vislumbrou qualquer relação entre a bexiga e as dores nas costas e, prudente, optou por permanecer calado.
O professor fez um novo gesto grandiloqüente, encetando novos esforços para falar, mas nada saiu da sua boca além de uns quantos sons incompreensíveis. Dessa vez, porém, ninguém se riu.
Todos queriam saber como se poderia extrair um diagnóstico válido apenas daqueles dois sintomas.
"Este homem", conseguiu por fim o docente balbuciar, "tem um carcinoma da próstata com metástases na coluna."
O diagnóstico deixou toda a gente embasbacada. Como se poderia saber tal coisa a partir de tão poucos elementos? O professor fez notar, com visível dificuldade em pronunciar as palavras certas, que a idade do paciente era um elemento decisivo na sua análise, mas mesmo assim permaneceram os olhares cépticos.
Chamou-se então a enfermeira para que ela mostrasse as radiografias e explicasse o quadro clínico do paciente. Para surpresa geral, ela acabou por confirmar a conclusão preliminar.
"O gajo pode ser um tonho a falar", observou José com um sorriso de admiração, "mas o diabo do homem tem um olho danado para os diagnósticos."
A vida de estudante no Porto, marcada por uma liberdade que embriagou José, ampliou-lhe a visão do mundo para horizontes que não sabia existirem. Longe do ambiente provinciano de Penafiel e dos olhares sempre vigilantes da família, o novo aluno de Medicina sentia-se na grande cidade um pássaro selvagem, as asas livres para cruzar a seu bel-prazer o imenso espaço azul da independência.
Por especial insistência da mãe, que se informara junto do pároco do Sameiro sobre o local mais recomendável para acolher o seu menino, instalou-se na Juventude Universitária Católica, uma residência de estudantes em plena Rua de Cedofeita. Todas as manhãs, quando a luz despontava no limiar dos telhados e a cidade despertava para um novo dia, José vestia invariavelmente a capa e batina negras e abalava para a faculdade, situada para os lados do Hospital de Santo António.
O primeiro ano do curso foi passado em grandes anfiteatros apinhados com mais de uma centena de alunos e onde decorriam as aulas, que não se revelaram muito do seu agrado; eram só conversa e teoria. Depois veio o horror dos cadáveres no teatro anatómico e as brincadeiras macabras dos estudantes mais experientes com os caloiros; a José chegaram a esconder uma mão decepada na mala. O curso não era bem o que idealizara, o que contribuiu para semear nele as primeiras dúvidas. Estaria de facto talhado para médico?
Quando no segundo ano o professor de Neurologia e Infecto- Contagiosas os levou para as primeiras aulas práticas nas enfermarias do Santo António, porém, as coisas mudaram. A medicina deixou de ser um arrazoado de palavrões incompreensíveis e de esquemas que tinha de decorar e adquiriu de repente um rosto humano. O velho que o professor Ribeiro havia interpelado naquela primeira aula prática, por exemplo, tornara viva a imensa abstracção a que na sua mente até então se reduziam os carcinomas.
"O segredo da medicina", proclamou o docente no seu característico discurso vacilante, "está no diagnóstico."
A profissão que tinha escolhido, apercebeu-se José nessas aulas práticas, não se limitava a um desfilar de nomes estranhos que era forçado a empinar; revelava-se um verdadeiro trabalho detectivesco, com o aluno, ou o médico, a procurar nos sintomas dos pacientes pistas que lhe permitissem desvendar os mistérios do corpo humano. Haveria trabalho mais apaixonante?
Das cadeiras teóricas, apenas Deontologia Médica lhe interessou. O essencial da matéria incidia na ética enunciada por Hipócrates na Grécia antiga e reproduzida com grande fulgor teatral pelo professor Pina num anfiteatro enxameado de alunos semiadormecidos.
"Por Apolo, médico, por Asclépio, Hígia e Panaceia e por todos os deuses e deusas, a quem conclamo minhas testemunhas", proclamou o docente de Deontologia Médica a abrir a primeira aula da disciplina, "juro cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue."
A promessa constante nas palavras iniciais do juramento de Hipócrates foi escalpelizada ao longo de todo o semestre, e em particular os deveres de cada médico de jamais recusar ajuda a alguém, estar sempre disponível para ir em socorro de um necessitado fosse qual fosse o local ou a hora do dia ou da noite, nunca fazer mal ao doente, não lhe dar medicamentos que o prejudicassem mesmo que ele os pedisse e até a preocupação de cobrar honorários tendo sempre em atenção as possibilidades económicas dos pacientes.
"A história da ética é, de certo modo, uma busca incessante de resposta a perguntas sobre o bem", explicou o professor Pina. "O que é o bem? O que é uma pessoa boa? A ética 4á-nos referências que nos orientam e dá-nos força que nos permite enfrentar dilemas e trabalhar para o bem comum. Aristóteles dizia que uma coisa é boa quando atinge o objectivo a que se destina. Se um livro é escrito para ser interessante e se as pessoas que o lerem o acharem interessante, então o livro é bom. Se uma pessoa quiser ajudar outra e a outra beneficiar desse acto, então podemos dizer que essa pessoa é boa. Mas, atenção, esta definição de Aristóteles levanta alguns problemas.
Olhem, por exemplo, para as notícias que apareceram nos jornais e na telefonia sobre a matança dos judeus pelos Alemães. Um alemão tem intenção de matar muitos judeus e mata-os com eficiência, o que leva a que a sua acção atinja o objectivo. Isso faz dele uma boa pessoa e do seu acto um bom acto?"
Para a maior parte dos estudantes a disciplina não passava de uma espécie de aula de moral, bem-intencionada mas risivelmente condescendente e paternalista, quase como se estivessem de regresso aos bancos da catequese. A excepção era José. O aluno de Penafiel sentia-se fascinado por estes temas, talvez por eles entroncarem nas conversas que ao longo de muitos anos mantivera com o pai sobre o que era o bem e o mal. Pareceu-lhe, aliás, que a questão do bem, embora de certo modo sempre presente nessas aulas como um espectro que tudo envolvia mas não se materializava, nunca foi frontalmente encarada pelo professor, como se o pudor o reprimisse.