A inquietação quanto a este tema era água que fervilhava nas entranhas de José, até ao dia, já perto do final do semestre, em que a pressão da curiosidade apertou e se tornou insuportável. Quis então questionar o professor a esse propósito a meio da aula, mas sentiu-se intimidado com a forma jocosa como os colegas lidavam com a matéria e optou por uma abordagem mais discreta.
Quando o docente deu essa lição por concluída e a turma dispersou, José foi no encalço do professor Pina e, já ao abrigo dos olhares indiscretos, interpelou-o à entrada do seu gabinete, questionando-o sobre os motivos pelos quais falava sempre em ética mas nunca no bem.
"A deontologia está directamente relacionada com a prática do bem", observou o docente enquanto inseria a chave na fechadura. "Repara, as regras que eu enuncio nas aulas não se destinam a manter-nos a nós, médicos, livres de sarilhos. Pelo contrário, podem até meter-nos neles." Abriu a porta, mas voltou-se para trás e encarou o estudante, exibindo o punho fechado. "A ética destina-se a mostrar-nos um caminho recto e a dar-nos força para o seguir, custe o que custar.
A ética cria força interior, cria força nas relações entre as pessoas e cria força nas comunidades.
Uma pessoa ética é uma pessoa que tem força e uma comunidade ética é uma comunidade que tem força."
"Professor", argumentou José, "Hitler tinha força, mas não me parece que fosse uma pessoa lá muito ética..."
"Estou a falar de força moral", explicou, entrando por fim no gabinete. "Anda cá, rapaz." Fez-lhe sinal de que o seguisse e apontou para uma cadeira diante de uma secretária. "Ora senta-te aí!" Ele próprio deixou-se cair na cadeira do outro lado da secretária, as costas voltadas para uma janela suja. "Estás bem instalado?"
"Sim."
"Ora bem", bufou, claramente entusiasmado por encontrar enfim um estudante que mostrava pela matéria o mesmo interesse apaixonado que ele. "O espírito humano procura sobretudo três coisas na vida: verdade, beleza e bondade. E como se não pudéssemos viver sem elas, como se cada uma fizesse parte integrante do nosso ser. Mas quando tentamos definir estes três elementos centrais da nossa espiritualidade as palavras falham-nos. O que é a verdade? O que é a beleza? O
que é a bondade?"
O aluno franziu o sobrolho, o olhar carregado de cepticismo.
"O senhor professor não consegue definir a verdade?"
"Tu consegues?"
"Bem, verdade é... é dizer uma coisa que corresponde a rialidade, acho eu."
"O que nos remete para o problema da realidade", apressou-se o professor a dizer. "Diz-me, a que espécie pertences tu no reino animal? És um insecto, um gato, um homem... és o quê?"
José riu-se.
"Que eu saiba, sou um homem."
"Ai sim? Imagina então que acordas amanhã e descobres que afinal és um gato que estava a sonhar que era um homem. Quantas vezes não nos acontece, enquanto sonhamos, acreditarmos piamente que o sonho é a realidade? E quem nos garante que não estás agora a sonhar?"
A pergunta intrigou o estudante.
"Quer dizer... acho que não estou." Apercebeu-se de que não tinha parecido suficientemente convicto e corrigiu: "Aliás, tenho a certeza."
"A certeza que tens agora é, presumo eu, a mesma certeza que tens de que, quando estás a sonhar, o sonho é a realidade. Vá lá, sê sincero..."
"Bem...", atrapalhou-se o aluno, "sim, é verdade."
"Então não conseguimos definir a verdade, pois não? Verdade é o que corresponde à realidade.
Mas qual realidade?" Fez uma pausa, para deixar a ideia assentar. "O mesmo se passa com a beleza ou com a bondade." Virou-se para trás e indicou uma árvore para lá da janela. "Estás a ver aquele castanheiro? De que cor são as folhas da copa?"
"São verdes."
"Agora imagina que eu sou cego de nascença e tenta explicar-me o que é o verde."
O estudante passou as mãos pelo cabelo, tentando coordenar os pensamentos.
"Quer dizer... o verde é... enfim, não sei bem como explicar..."
"Exacto!", exclamou o professor, quase a saltar na cadeira. "O verde é uma propriedade elementar, mas é impossível de explicar a quem nunca o viu. O mesmo se passa com o calor... ou com a bondade." Fez um gesto largo, englobando todo o seu gabinete. "Há certas coisas na vida que, apesar de existirem, não é possível enclausurar ou exprimir em palavras. São, se quiseres, propriedades intuitivas. Existem, apesar de não podermos descrevê-las com rigor. A sua definição exacta escapa-se-nos e, quando tentamos formulá-la, nunca é pela positiva, mas pela negativa."
José sacudiu a cabeça, sem entender.
"Pela negativa? Que quer dizer com isso?"
O professor Pina apontou-lhe o dedo, à maneira de um acusador na barra do tribunal.
"Não matarás!", ditou, como se ele próprio detivesse as tábuas da lei. "Não roubarás! Não cobiçarás! Não isto e não aquilo!" Abriu os braços, no gesto de que a demonstração estava feita. "É
tudo pela negativa, estás a ver?"
"Então não há uma definição positiva para a bondade..."
"A bondade existe, todos sabemos o que é, mas, tal como quando falamos da verdade ou da beleza, não conseguimos captar por palavras a sua essência." Fez com as mãos um movimento vago no ar. "Aristóteles dizia que todos os seres humanos buscam a felicidade. Eu diria que a bondade é o esforço que cada um de nós faz para que todos alcancem a felicidade."
"É a sua definição?"
O professor Pina encolheu os ombros.
"Pode não ser perfeita, mas é a minha", assentiu. "Claro que depois se cria o problema de definir a felicidade, não é? E lá voltamos ao ponto de partida."
"Então não há definições satisfatórias."
"Pois não." Hesitou. "Quer dizer, existe uma outra que também acho curiosa. Não é directa, mas roça a verdade. Queres ouvi-la?"
"Quero pois."
O docente de Deontologia Médica girou na cadeira e contemplou pela janela os estudantes que lá em baixo deambulavam entre as árvores no seu vaivém incansável, como se a simples imagem da faculdade a palpitar de vida fosse por si só uma inspiração.
"Um homem bom gosta das pessoas e usa as coisas", enunciou. "Um homem mau gosta das coisas e usa as pessoas."
Depressa se percebeu que o jovem José Branco gostava de pessoas; era brincalhão e bem-disposto com os colegas, sempre pronto para a farra, mas não havia dúvida de que as suas preferências iam para as criaturas do sexo oposto.
Apesar de os rapazes estarem albergados na residência da Juventude Universitária Católica, o tema de conversa nos tempos livres era, a qualquer hora do dia, "as gajas". Cada um tinha a sua favorita, normalmente uma qualquer paixão platónica alimentada nos corredores da faculdade, mas isso não os inibia de estabelecer comparações entre esta e aquela, sempre com abundantes referências aos seus louváveis "atributos", sendo que por esta palavra, e apesar de se tratar de estudantes de uma residência católica, ninguém se referia propriamente aos predicados espirituais das moças.
Com o tempo José foi ganhando a noção clara de que lhe faltava alguma coisa. Tanto assim foi que se pôs à procura de rapariga para uma relação mais séria; o problema era saber onde encontrá-
la.
Apercebeu-se de que a solução poderia estar no seu talento para as artes. A meio do primeiro ano inscrevera-se no Orfeão, onde brilhava a dedilhar a sua guitarra ou a arrancar notas de um piano. Sem nunca largar a capa e a batina, que começavam a ficar roçadas de tanto uso, passou também a escrever textos numorísticos para várias revistas universitárias. Tanta e tão notável actividade artística granjeou-lhe alguma notoriedade e inevitável popularidade entre as estudantes.