Выбрать главу

Alinhavou várias candidatas e a sua escolha acabou por recair numa morena escultural que também frequentava Medicina, embora um ano atrasada em relação a ele, e com quem se Cruzava muitas vezes nos corredores da faculdade. Inquiriu a identidade e disseram-lhe que se chamava Juliana.

Conheceu-a na Confeitaria Suave, em plena Cedofeita, que ela frequentava para se alambazar com uns pastéis enquanto estudava. Com a eficiência de um caçador a estudar as rotinas presa, começou por lhe identificar os hábitos.

Certa tarde, e quando considerou completa a fase de estudo, Passou à acção e montou-lhe uma espera na confeitaria. Ela aPareceu à hora habitual e sentou-se no lugar costumeiro, perto do balcão. José aguardou que o estabelecimento se enchesse. No momento que considerou propício, foi ter com ela e, a pretexto de não haver mais lugares disponíveis, pediu-lhe licença para se Sentar.

Apanhada de surpresa, Juliana acedeu.

Foi uma tarde agradável. O rapaz disse umas graçolas, ela achou piada, José "descobriu" que ambos estudavam Medicina, observou que o estudo em conjunto era mais eficaz e, quase no mesmo fôlego, convenceu-a a ir ao cinema. Os encontros na Confeitaria Suave tornaram-se assim uma rotina, e as idas ao cinema também, de tal modo que, à terceira vez, e tirando Partido oportuno do adequado ambiente romântico criado pela trama emocionante da fita, um melodrama delicodoce com Audrey Hepburn e Gregory Peck, arrancou-lhe o primeiro beijo na escuridão.

Tornaram-se oficialmente namorados. O que José não sabia é que a coisa seria de curta duração, como uma etapa que se cumpre a caminho de um outro destino.O ambiente dentro da Confeitaria Suave era nesse dia abafado, quase asfixiante, e Juliana sentiu que já não aguentava mais. A rapariga acordara maldisposta, devido aos rigores próprios das mulheres na sua altura do mês, e a atmosfera carregada no interior da pastelaria, onde o tabaco se desfizera numa neblina prateada, ténue mas baça, agravara-lhe a indisposição.

"Zé, vamos embora."

O namorado lia um O Primeiro de Janeiro emprestado pela mesa do lado e queria ficar mais um pouco, mas apercebeu-se da palidez da rapariga e nem discutiu. Largou um tostão sobre o balcão para pagar o café que haviam partilhado, devolveu o jornal e fez sinal para saírem.

O ar na rua pareceu-lhes fresco e revigorante, enchendo-os de renovada energia, e apeteceu-lhes um passeio para namoriscar as lojas. A tarde adormecia cinzenta, embalada pela luminosidade metálica que o céu de cobre projectava nas fachadas e pelas nuvens carregadas que deslizavam baixas, tingindo de sombras a rua mais comercial da cidade. A Cedofeita fervilhava de gente que acabara de almoçar e seguia nesse momento para os empregos, mas mesmo assim uma importante parte dos transeuntes eram clientes que haviam aproveitado a tarde tristonha para espreitar as concorridas boutiques da Baixa do Porto. As vitrinas exibiam as primeiras novidades desse Outono de 1955, inspiradas directamente nos modelos que faziam a moda em Paris, ou promoviam ainda os saldos das roupas que haviam sobrado do Verão.

Juliana seguia de mão dada com o namorado, distraída a contemplar as vitrinas, quando uma voz interpelou o par.

"Às compras?"

Os dois olharam e viram um rosto conhecido dirigir-se-lhes em plena Cedofeita.

"Ludovina!"

Tratava-se de uma das raparigas do Orfeão e vinha acompanhada por uma amiga. Com um gesto casual, José desviou os olhos para a amiga e ela olhou-o também. Estreitou as pálpebras, perturbado. A acompanhante de Ludovina era uma rapariga alta, de cabelo castanho liso e um olhar provocador por detrás de uns óculos de aros pontiagudos que, enquadrando uns olhos verdes líquidos, lhe concediam uma beleza inesperadamente sofisticada, como a das mulheres inalcançáveis.

Não se lembrava de alguma vez a ter visto, embora se apercebesse de que havia algo de estranhamente familiar naquele rosto; ou a conhecia de algum sítio ou ela fazia-lhe lembrar alguém.

Tentou situá-la, procurando contextualizar-lhe a face em ambientes diferentes, mas a identificação escapava-lhe, como uma palavra que se busca e nunca se alcança. Desviou o olhar e aquele rosto delicado ficou a brilhar-lhe na retina, parecia o clarão do Sol que ainda nos encandeia depois de o termos mirado por um breve momento.

"Vimos ali atrás um vestido que era um encanto", observou Ludovina, indicando uma loja no outro lado do passeio. "Mas e o preço? Ui, um horror!"

"Ah, já se sabe como é", concordou Juliana. "Bom e barato não há!"

José esforçava-se por manter a atenção presa em Ludovina, mas a imagem da face da amiga era já um fantasma que se recusava a desaparecer e ele voltou a desviar os olhos na direcção dela, como se a rapariga fosse um poderoso magneto, e tentou freneticamente situá-la nos arquivos da mente. A sensação de que a conhecia não o largava.

Ludovina apercebeu-se desse olhar inquieto e voltou-se, fazendo sinal à sua acompanhante de que se aproximasse.

"Vocês já conhecem aqui a minha amiga?", perguntou. "É uma colega de Farmácia."

A rapariga sorriu e acenou na direcção do par de namorados.

"Olá!", saudou. "Sou a Mariana. Mas lá em Cabo Verde todos..."

José arregalou os olhos, identificando-a por fim.

"... me coisam por..."

"Mimicas?!"

A rapariga desviou para ele o olhar, observando-o pela primeira vez com atenção, estudando-lhe o rosto quadrado, os grandes olhos castanhos, as sobrancelhas que lhe conferiam uma expressão de mau, à Frank Sinatra, e, como se nesse instante tivesse sido atingida por um relâmpago, reconheceu-o também. "Zé?"

Ficaram ambos um longo momento a fitar-se, incrédulos e quase chocados, a estudar traços e a compará-los com as imagens gravadas na memória, cada um a descortinar no outro a pessoa com quem partilhara tantos passeios dominicais da Igreja do Sameiro até casa.

"Vocês já se conhecem?", admirou-se Ludovina. "Valha-me Deus, Zé! Já me tinham dito que te davas com toda a gente, mas sempre pensei que era maneira de falar..."

José achou a sua velha amiga, na verdade a sua primeira paixão, estranhamente igual e familiarmente diferente da rapariga que numa manhã de domingo se despedira dele à porta de casa com uma lágrima grossa a correr-lhe pela face, talvez a imagem mais clara que dela lhe imprimira a memória. O olhar verde maroto ali permanecia, a pele nívea e os lábios bem desenhados também. Mas o corpo era já o de uma mulher, sinuosa e de busto vasto. Os óculos de aros pontiagudos constituíam igualmente uma novidade e o rosto tornara-se mais doce, parecia uma Elizabeth Taylor. Estendeu o braço e, quase sem consciência do que fazia, tocou-lhe no cabelo e experimentou-lhe a textura.

"Tens o cabelo diferente", observou, quase como se estivesse em transe. "Está mais escuro e já não tens os canudos."

Ela ergueu também a mão e passou-lhe o dedo pelo rosto, como se o desenhasse.

"E tu? Perdeste a inocência..."

Tocavam-se assim em plena Cedofeita, como dois escultores a acariciarem as suas criações, maravilhados pelo seu próprio génio, encantados com a obra que as suas mãos haviam concebido, ambos criadores e criaturas.

"Zé, vamos embora!"

A voz de Juliana transmitia uma urgência que José intuía não ser verdadeira. Que ele soubesse não tinham pressa de ir a lado nenhum, nem na verdade era pressa o que a voz da namorada transmitia. Era medo. Mas medo de quê?, admirou-se. Foi quando deu os primeiros passos para a acompanhar e voltou o rosto para trás para se despedir de Mimicas que tudo ficou enfim claro e percebeu o tremor que sentira na voz de Juliana.