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"Não é verdade. O meu marido ajuda-me."

"Ora, o que percebem os homens de bebés? Eles servem é para os fazer, não para cuidar deles!"

Por mais que Amélia insistisse que a ajuda não era precisa, o mulherio aparecia, persistente, insistindo que a recusa não passava de modéstia; onde já se vira uma mãe com tantos filhos e apenas uma criada em casa a prescindir do precioso auxílio que primas e vizinhas com tanta generosidade lhe ofereciam para esfregar o pirralho?

Todos os dias a romaria se repetia sem descanso. As primeiras vezes, as alcoviteiras subiam ao quarto e, após uma negociação implacável, lá logravam arrancar a criança do berço e carregá- la para a lavagem; ouviam-se gritinhos abrasados quando lhe retiravam a fralda de pano, ao que se seguia um verdadeiro burburinho carregado de comentários a comparar a virilidade do bebé "com a verga do meu homem"; havia até quem tivesse observado que, "se já é assim de tão tenrinha idade, imagine-se o cavalão que vai sair daqui dentro de mais uns aninhos", verificação que se tornou célebre por ter desencadeado uma sinfonia de risinhos e a muitas ter excitado a imaginação para além do recomendável.

Foi intensa e laboriosa, mas durou pouco esta romaria. O capitão Branco, homem de rigor e pose austera, estranhou tamanha excitação sempre que as obrigações no quartel o libertavam antes da hora prevista e chegava a casa mais cedo.

De início nada disse, convencido de que aquela efervescência era coisa própria de mulheres.

Mas à terceira vez, estranhando um comentário que captara à distância a propósito do "chourição do petiz", decidiu indagar o assunto e, ao perceber por fim do que se tratava realmente, mandou aferrolhar a porta a parentes afastadas, vizinhas e demais curiosas; o chefe da casa não estava para aturar poucas-vergonhas.

"Essas galinhas que fiquem nas suas capoeiras", vociferou ao encerrar o assunto. "Irra!"

Com o acesso vedado à casa da família Branco, o burburinho foi diminuindo, devagar, até acabar por tombar no silêncio das coisas que se vão esquecendo, a história do bebé com pénis de adulto transformada aos poucos numa memória que, com o passar do tempo, adquiriu nítidos contornos de fantasia e alucinação, exageros por certo de mulheres histéricas cujo mal o capitão havia a seu tempo diagnosticado sem margem para erro.

"Têm falta de homem."O vulto assomou à porta, cortando o halo de luz que flutuava à entrada do quarto, e aproximou-se da cama onde se encontrava o pequeno José. O corpinho de três anos encolhia-se entre as mantas num esforço para reter o calor, os olhos molhados pelas lágrimas que lhe escorriam abundantes pela face. Quando o vulto se inclinou e o beijou na testa, o menino sentiu-lhe o aroma familiar e percebeu que era o pai.

"Que foi, Zezinho? Porque choras?"

O filho choramingou.

"Tenho medo..."

"Medo de quê?"

"Do escuro. A mamã?"

O capitão Branco pegou-lhe na mão gelada, procurando aquecê-lo e confortá-lo.

"Está em Trás-os-Montes a ajudar a tia Joana. Sabes que o tio Luís foi para o Céu e a tia precisa de auxílio."

A criança voltou a choramingar.

"Quero a mamã!..."

O capitão Mário Branco era um homem de pose austera, voz de trovão e postura hirta, imagem dura que contrariava a brandura com que geria os assuntos de casa, em particular no que dizia respeito aos pequerruchos. É certo que entre pais e filhos não permitia intimidades nem carícias; desconheciam-se naquela casa abraços e beijos meigos. Os pequenos cumprimentavam os pais com um respeitoso beijo na mão; era esse o modo corrente e em vigor naquele lar de bons católicos.

Apesar de respeitar com desvelo convenções socialmentg aceitáveis, o oficial manifestava com as crianças uma atenção pouco habitual nos homens do seu tempo.

"Queres ouvir uma música?"

O filho mais novo assentiu com a cabeça e engoliu os derradeiros soluços, aprontando-se para o que aí vinha. Os serões musicais eram mágicos, apesar de não entender as palavras que os compunham; parecia-lhe que da boca do pai brotava a língua dos anjos, melíflua e encantada, e admirava-se por ver vocábulos tão misteriosos fundirem-se com tal perfeição nas modulações melancólicas com que ele o enfeitiçava.

José não o podia ainda saber, mas escutava música italiana. O pai era um amante de árias napolitanas, que devorava desde os seus tempos de cadete em Lisboa, quando frequentava o São Carlos. Foi pois com uma ária de ópera italiana, entoada com voz poderosa e o tom vibrante adocicado pela brandura da melodia, que nessa noite adormeceu o filho mais novo na penumbra nocturna que toldava os longos corredores desertos da casa de Penafiel.

Celeste Aida, forma divina. Místico serto di luce e fior, Del mio pensiero tu sei Regina, Tu di mia vita sei lo splendor.

II tuo bel cielo vorrei redarti, Le dolci brezze dei pátrio suol; Un regai sertã sul crin posarti, Ergerti un trono vicino al sol.

A canção melancólica parecia destinada à mulher ausente, um grito de saudade que o tempo decerto aplacaria. Mas o próprio tempo o desenganou. Quando Amélia regressou de Trás-os-Montes foi como se não tivesse voltado; a mulher que havia partido regressara uma pessoa diferente.

Desde que Joana enviuvara, Amélia tornou-se distante e encerrada nela mesma. Era como se tivesse morrido, isolada do mundo e remetida para uma outra existência; dava a impressão que se tornara uma figura espectral, pairando como uma sombra pelos cantos da casa.

Sem compreender o que se passava com a mulher, o marido assustou-se e levou-a ao doutor Reis. O médico viu-a e, após a consulta, emitiu o veredicto.

"Uma depressãozita sem importância."

"O que devo fazer, doutor?"

"Não faça nada. Isto passa-lhe."

Mas não passou.

A depressão de Amélia prolongou-se por vários meses, deixando o capitão perdido em mil conjecturas e incapaz de lidar com a questão. Achou a certa altura que o amor que sentia por ela poderia resgatá-la do abismo em que havia mergulhado, mas primeiro teria de entender o problema de modo a perceber como desbravar um caminho que a guiasse para a redenção.

Questionou-a com insistência, num esforço de quebrar o mutismo teimoso e persistente que dela se apossara, mas por mais que a interrogasse nada lhe conseguiu arrancar além das lágrimas silenciosas que lhe empalideciam o rosto.

Desesperou, pois o caso parecia-lhe perdido.

A inexplicável situação só se alterou numa manhã de domingo. Após a missa dominical na Igreja do Sameiro, e esgotadas todas as outras soluções, o capitão Branco foi ter com o padre Jacinto e apresentou-lhe o problema.

"Não come, não dorme, chora a toda a hora, já quase nem liga às crianças... Com franqueza, não sei o que lhe hei-de fazer!"

O pároco desviou os olhos para lá do ombro do capitão e cravou a atenção na mulher, que ficara sentada junto à porta, a cabeça a fixar os pés numa postura de tristeza lassa, como se a alma tivesse partido e o corpo não passasse de um invólucro desocupado.

"O senhor capitão vá para casa e volte ao meio-dia para a vir buscar, se faz favor."

O padre Jacinto acolheu Amélia na Igreja do Sameiro. Ouviu-a nessa manhã em confissão e prescreveu-lhe uma longa penitência. Quando o marido a levou para casa, notou nela uma transformação subtil. A mulher mantinha o olhar amargurado, mas havia algo de indefinível que se alterara, como se uma pequena luz se tivesse acendido naquela treva cerrada; era uma chama frágil, mas cintilante.