Era medo de Mimicas.
O encontro com a antiga paixoneta de infância despertou em José uma avalancha de lembranças que julgara esquecidas e de emoções que pensara ultrapassadas. Descobriu com espanto que não estavam. Encontravam-se era recalcadas e mal resolvidas. Ao soltar inadvertidamente aqueles demónios até ali escondidos da sua consciência, o reencontro com Mimicas revelou-se um momento de epifania, porque tudo trouxe à tona, e também de magia, como se constatava pelo feitiço que dele se apossara.
"Então, meu caro?"
A interpelação trouxe José do mundo da fantasia para a realidade da aula. Recentrou a atenção e o rosto delicado de Mimicas esfumou-se, dando lugar às barbas do professor Pina, que o fitava com intensidade. "Hã?"
"Estamos no mundo da Lua, ora estamos? Pois faria melhor em regressar aqui à sala!"
Mas era mais forte do que ele. A emoção do reencontro revelou-se demasiado intensa; era como se tivesse embarcado numa viagem inesperada ao passado. Mergulhou num estado de permanente melancolia, em que cada situação se transformava numa oportunidade para se afogar em sentimentos de quase dolorosa nostalgia, como se tudo fosse um pretexto para regressar aos tempos de inocência perdida com Mimicas, quando o mundo era simples e as escolhas claras e o corpo obedecia ao coração e não ao monstro que lhe enchia as calças.
Acordava com memórias mágicas dos passeios desde a Igreja do Sameiro, estava nas aulas e apenas se lembrava das conversas com a rapariga do cabelo castanho-claro aos canudos, falava com as pessoas e procurava em todos os rostos o olhar malandro e rebelde da amiga de infância.
Ao cabo de alguns dias sem ser capaz de sair desta letargia percebeu que teria de fazer alguma coisa. Ou melhor, uma coisa. Delineou um plano e deu um salto à faculdade de Farmácia para consultar as listas de alunos e os horários das aulas. Já na posse das duas informações de que precisava, e sentindo-se bem melhor desde que passara à acção, deu início à segunda fase do plano.
A emboscada.
Uma chuva leve, prenúncio de um Outono mais agreste, descia sobre a cidade naquele fim de tarde sombrio quando Mimicas saiu da faculdade e se cruzou com José no portão.
"Por aqui?", espantou-se ele.
"Isso pergunto eu", riu-se Mimicas. "O que estás a coisar na minha faculdade?"
"Vim procurar uma sebenta farmacêutica para a minha cadeira de Farmacologia. Não sei se sabes, mas os médicos também lidam com medicamentos..."
A rapariga revirou os olhos.
"Não me digas!", ironizou. "A sério?"
José olhou-a com uma expressão pensativa, como se tivesse acabado de lhe ocorrer uma ideia.
"Mas para que quero eu uma sebenta se te tenho a ti? Importas-te de me dar uma ajuda?"
"Eu? Mas vou agora para casa!..."
O rapaz aproximou-se dela e fez um gesto para a rua, convidando-a a seguir caminho.
"Eu acompanho-te", disse. "Se não te importares, claro."
Mimicas encolheu os ombros, como se a sugestão não a incomodasse, e começou a andar.
"Olha que vou a pé e ainda vai ser uma boa caminhada..."
"Ainda bem. Contigo gosto de conversar a caminhar. Estranho seria se fosse de outra maneira."
A rapariga sorriu perante a referência implícita aos passeios que ambos davam em Penafiel depois da missa no Sameiro; era um facto que todas as conversas da sua infância haviam decorrido da igreja até casa.
"Portanto", observou ela, "parece que estamos de volta aos bons velhos tempos."
"Ora nem mais!", exclamou ele com evidente agrado por Mimicas nada ter esquecido. "Onde vives?"
"No coiso."
"Onde?"
"Ai... na Boavista."
"Tens lá casa?"
Ela soltou uma gargalhada.
"Uma casa na Boavista? Isso queria eu!" Abanou a cabeça. "Não, estou na Casa das Doroteias. É
um lar para raparigas ali no Largo da Paz, mas está-se lá muito bem."
Caminhavam os dois lado a lado, já embrenhados na conversa; falavam e nem se apercebiam por onde andavam, guiados por uma espécie de piloto automático.
"Tens saudades de Cabo Verde?"
"Algumas", confessou ela. "Mas a Europa é outra coisa. O que me encanta aqui na Metrópole são as ruas e as estradas. Ai, são tão boas!" Apontou para a rua. "Olha para isto! Que maravilha de pisos! Lá não se coisam estradas assim. É tudo em terra batida e muito poeirento. Puf, um horror!"
José contemplou o empedrado da rua, típico do Porto e da Região Norte. Nunca lhe ocorrera que alguém pudesse apreciar daquele modo algo tão simples como o piso de uma estrada. Não havia dúvida de que só se valoriza o que não se tem.
"Porque te matriculaste em Farmácia?", perguntou. "Queres assim tanto ser farmacêutica?"
Ela corou.
"Na verdade queria era ser médica", murmurou em jeito de confissão. "Mas só de imaginar que tinha de coisar num teatro anatómico!... Valha-me Deus! Nunca vi um morto, nem quero ver!"
Virou a cara para ele. "E tu? Não te faz impressão?"
José torceu os lábios.
"Nem por isso."
"Nem um bocadinho?"
"Não", disse com uma expressão condescendente, como se lidar com a morte fosse para ele coisa quotidiana. "E um pouco como entrar no talho..."
"Ai que horror!", exclamou Mimicas, tapando a cara com as mãos. "Como é que consegues?"
"É canja."
"Pois eu não sou capaz! Gostava de ser médica, mas nunca conseguiria fazer Anatomia e foi por isso que me matriculei em Farmácia. Ao menos ali não temos de lidar com cadáveres."
"É a única coisa que fazes aqui no Porto? Estudas Farmácia e mais nada?"
"Ora! Já não é pouco! Que mais querias que estudasse?"
"Não digo estudar, mas podes fazer outras coisas. Por exemplo, eu ando no Orfeão. Não gostavas de te inscrever também?"
"Não sei coisar nenhum instrumento."
"Podias cantar..."
A rapariga soltou uma gargalhada.
"Eu? Cantar? Mas não tenho voz nenhuma, Zé. Ia cantar o quê? O fado da esganiçadinha?"
Mimicas entoou umas notas. A voz, habitualmente cristalina, desafinou de imediato e fraquejou por completo quando as notas subiram dois tons, o que fez o amigo rir.
"Está bem, cantar foi uma má ideia", admitiu. "Temos de pensar noutra coisa. Que tal se escreveres? Nós temos agora um jornal humorístico, O Lamiré, e precisamos de textos novos. Como tu és uma pessoa com graça..."
Ela abanou a cabeça.
"Receio não ter jeito nenhum para as artes. Música, escrita, desenho... sou um zero à esquerda.
Adoro ler, não perco um coiso da Agatha Christie, mas a minha escrita é uma nódoa."
"É pena..."
"Tu, para compensar, és um verdadeiro artista", lançou-lhe Mimicas num tom jovial. "Mas quer-me cá parecer que o teu verdadeiro talento está nas artes musicais."
"Achas?"
"Claro", exclamou com uma ponta de veneno na voz. "Desde que nos encontrámos que não tens parado de me dar música!"
"Oh! Porque achas isso?"
"Porque vieste ter comigo a dizer que tinhas umas dúvidas de Farmacologia e ainda não me fizeste uma única pergunta sobre o assunto. Afinal que dúvidas são essas?"
Apanhado de surpresa, o amigo enrubesceu e desviou o olhar para um ponto indefinido na rua.
Havia pensado em tudo, mas esquecera-se desse pormenor. Que diabo precisava ele de saber para a cadeira de Farmacologia?
"Eu... enfim, fica para a próxima vez, está bem?"
O olhar dela tornou-se ainda mais provocador que o habitual.
"Primeiro vais procurar a tal sebenta?"
"É isso."
A pressa e o alívio evidente com que José agarrou a deixa arrancaram a Mimicas um novo sorriso.