"Não há dúvida", murmurou a rapariga, falando mais para ela própria que para o amigo. "és um músico."Uma nova rotina instalou-se na vida de José. Quando as aulas acabavam, Mimicas saía da faculdade e, com a pontualidade que decerto herdara do pai, o rapaz cruzava-se "por coincidência" com ela e cumprimentava-a com um sorriso "surpreendido".
"Olá!", dizia invariavelmente. "Por aqui?"
A farsa tornou-se divertida. Se Mimicas vinha acompanhada por uma ou duas colegas, José seguia em frente e desaparecia ao fundo da rua, alheio às risadinhas das raparigas. Mas se por acaso saía sozinha, ao cumprimento seguia-se uma frase que se tornou ritual nessas circunstâncias.
"Oh, não me digas que estás abandonada! Não te apoquentes, eu faço-te companhia até às Doroteias."
Foi como se os passeios dominicais em Penafiel tivessem sido retomados, agora numa outra cidade, com um itinerário novo e um pretexto diverso. O facto é que os giros dos dois da faculdade até à Praça da Paz, onde se situava o lar, eram sempre animados. Nunca lhes faltava tema e, embora fossem pessoas diferentes, pareciam partilhar interesses e um olhar bem-humorado sobre a vida.
As conversas abordavam os mais variados assuntos, mas curiosamente, ou talvez não, a matéria constante em Farmacologia nunca foi um deles.
Ao fim de duas semanas, e numa altura em que já nem sequer fingia que a encontrava por mero acaso à saída das aulas, José achou que o terreno estava suficientemente sólido para dar o passo seguinte. Num dos passeios subsequentes, e quando caminhavam lado a lado já perto da Boavista, encostou a mão à dela. Mimicas não reagiu. Encorajado, fez novo encosto uns passos mais adiante e dessa vez tentou enlaçar-lhe os dedos. A rapariga retirou de imediato a mão, mas teve o cuidado de não mencionar o assunto, como se tudo fosse comunicado sem nada ser dito. Ele percebeu que teria de ser mais paciente e refreou a primeira ofensiva.
Os acontecimentos, todavia, em breve se precipitaram. Num dos passeios a meio da semana seguinte cruzaram-se com Ludovina à saída da faculdade. Trocaram sorrisos e cortesias, mas a amiga, embora mantendo um trato polido, lançou-lhes um olhar desconfiado.
Três dias depois, e num outro ponto do itinerário, voltaram a dar de caras com a mesma Ludovina e dessa vez mal conseguiram ocultar o embaraço por se verem de novo apanhados na companhia um do outro em tão pouco tempo.
"Mau, mau", resmungou Mimicas quando se afastaram. "Já não estou a gostar disto."
"E aborrecido", reconheceu o rapaz. "É a segunda vez que a Ludovina nos apanha juntos."
"Isto vai dar falatório. Se calhar é melhor acabares de me coisar à porta da faculdade."
A sugestão quase o indignou.
"Ora essa! Não vejo porquê!..."
"Mas vejo eu!", cortou ela, ainda irritada por terem sido avistados pela amiga. "É melhor pararmos com isto."
Parar era a última coisa que ocorria a José, que quase entrou em pânico ao ouvi-la falar assim.
Seria possível que aqueles passeios na sua companhia lhe fossem indiferentes?
"Porquê? Qual é o mal?"
Mimicas deteve-se à esquina e rodou sobre os calcanhares, fitando-o com uma expressão penetrante.
"Porquê? é preciso ter lata!", exclamou num tom inesperadamente acusador, espetando-lhe o indicador com força no peito. "Tu sabes muito bem porquê!..."
"Não, não sei."
"Porque tu tens um problema que precisas de resolver", vociferou Mimicas, elevando a voz quase em protesto por ter de lhe explicar o que a ela parecia óbvio. "E enquanto não o resolveres não vale a pena vires ter comigo, ouviste?"
Deu meia volta e arrancou em passo apressado, deixando assim claro que não desejava ser acompanhada. José ficou plantado a meio do passeio, tentando perceber se havia dito ou feito algo de errado, e abriu os braços num gesto de perplexidade e impotência.
"Mas que problema?"
Ela estacou e olhou para trás.
"O problema a quem davas a mão quando eu e a Ludovina te encontrámos em Cedofeita."
Retomou a marcha e desapareceu ao virar da esquina.
A interrupção daqueles passeios era mais do que José podia suportar. Pela segunda vez na sua vida fora apartado da companhia de Mimicas e a verdade é que se sentia definhar sem ela. Era surpreendente e aterrador, mas percebeu que não podia passar sem a amiga de infância. Chegou a ir esperá-la de novo à porta da faculdade, mas quando ela lhe perguntou se já tinha resolvido "o problema" e ele baixou os olhos a rapariga ignorou-o e seguiu caminho sem lhe prestar mais atenção.
Doeu de tal forma que, ao fim de alguns dias, José chegou à conclusão de que não tinha mais espaço para protelar o que era inevitável. Sentindo-se encostado à parede, reuniu a coragem que habitualmente falta aos homens nos momentos de ruptura e teve com Juliana a conversa a que não havia modo de escapar. Como seria de esperar, a namorada reagiu mal, com lágrimas em abundância e recriminações cuja justeza ele não podia negar, pelo que foi com um sentimento de alívio e alguma culpa que por fim se separou dela e saiu à rua, agora um homem já descomprometido.
Voltou a aguardar Mimicas à saída da faculdade, o espírito leve e a resolução enfim tomada, e logo que a viu, felizmente sozinha, cortou-lhe o caminho.
"Olá", cumprimentou-a. "Queres ir dar um passeio?"
A rapariga lançou-lhe um olhar perscrutador.
"Sabes bem qual é a minha resposta..."
"Vem e não te arrependerás."
O ar estranhamente confiante de José convenceu-a. Concordou com um aceno de cabeça e deixou-se guiar por ele até a um autocarro que os levou pelas ruas do Porto até à Foz.
Acolheu-os o murmúrio cavado do mar. As ondas eram fortes nesse dia, fustigando as paredes do passeio e babando-as de espuma fervilhante. Os salpicos de água sucediam-se ao deflagrar apoteótico das ondas e enchiam o ar de um aroma salgado a mar, borbulhante e quase picante, um odor tão intenso que lhes penetrava nas narinas como um perfume exótico.
"Está bravo", observou José. "Tens frio?"
"Um bocadinho..."
O rapaz indicou um café do outro lado da rua.
"Anda ali ao Caravela."
O café estava quase vazio, como seria de esperar àquela hora naquele local, pelo que puderam instalar-se à janela num lugar com vista privilegiada para o mar e pediram dois galões com torradas em pão de forma.
"Tenho uma novidade para te dar", anunciou ele logo que se viram a sós. "Acabei o namoro com a Juliana."
Mimicas soergueu o sobrolho.
"Isso quer dizer o quê?", perguntou com cautela. "Que vais voltar a esperar-me ao fim das aulas e coisar-me até casa?"
O rapaz respirou fundo. Tinha passado a véspera a ensaiar o discurso, mas, como sempre sucedia naquelas ocasiões, de repente a garganta havia-lhe secado, o coração disparara e a memória atraiçoava-o. Nos ensaios as palavras escorriam como mel, parecia que fluíam por um ribeiro gorgulhante e límpido, mas nesse momento, em que chegara a hora da verdade, encravavam e encavalitavam-se umas nas outras, transformando o seu discurso num arrazoado hesitante e trapalhão. O melhor, concluiu, era manter a coisa simples.
"Podia dizer-te o que planeei para esta ocasião", balbuciou, engolindo duas vezes em seco e afastando os olhos, talvez demasiado envergonhado para a fitar. "Que sonhei contigo e que quando acordei descobri que estava apaixonado. Podia dizer-te isso e muito mais, e sempre com palavras bonitas. Mas a verdade é que isso não aconteceu." Neste ponto o discurso tornou-se mais escorreito e o olhar deixou de fugir para se cravar nela. "Ou melhor, não aconteceu agora. A verdade é que foste a minha primeira paixão. Avistei-te um dia na varanda de tua casa e foi como se me tivessem roubado o ar. Não descansei enquanto não te voltei a ver e de cada vez que te via tinha mais e mais vontade de te ver outra vez. E quando partiste foi como se tivessem arrancado uma parte de mim.