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Não o sabia ainda, mas levaste-me o coração. Partiste para África e, sem que eu mesmo o soubesse, o meu coração partiu contigo." Voltou a engolir em seco. "Sempre tive a consciência de que foste a minha primeira paixão. Mas o que eu não sabia, e só agora soube, é que foste também a única." Pôs a mão sobre a mesa, como se pedisse autorização para a aproximar dela, e sentiu o suor brotar-lhe inadvertidamente do topo da testa. "O que eu queria... o que eu quero saber é se... se aceitas que eu... enfim, que nós nos tornemos namorados."

Quedaram um longo momento a fitar-se, ele expectante e nervoso, ela com a expressão marota a bailar-lhe nos olhos, deixando prolongar a dúvida até aos limites do suportável, até ao instante em que o tempo se suspendeu e por fim o sorriso lhe aflorou aos lábios e o braço pousou na mesa para lhe tocar a mão com a mão. Não foi um "sim", mas foi como se fosse.A tarde adormecia cinzenta, embalada pela luminosidade metálica que o céu de cobre projectava na cidade e pelas nuvens carregadas que deslizavam baixas, tingindo de sombras as ruas do Porto. Logo nesse fim de tarde foram os dois avistados no eléctrico sentados lado a lado, comportamento reservado aos casalinhos, e de imediato a notícia se espalhou pela Casa das Doroteias, pelas duas faculdades e pelo Orfeão.

José e Mimicas namoravam.

A novidade não caiu muito bem. A rapariga foi acusada de "roubar o namorado" à pobre da Juliana, moça de grandes virtudes e por todos estimada. A acusação doeu a Mimicas, que clamava inocência e repetia a quem se dispunha a ouvi-la sobre o assunto, e sempre sem faltar à verdade, que não, que ele é que se aproximara, que ela lhe dissera que não achava bem aquela aproximação tendo ele uma namorada, que ele é que acabara com a namorada, que ele estava livre quando ela lhe disse que sim, embora na verdade nunca lhe tivesse dito que sim, limitara- se a sorrir e a consentir quando ele a pedira em namoro no Café Caravela e ao lado o mar, ele sim, soprara que sim."Ora querem lá ver isto?", queixou-se ao namorado. "Agora sou vista como uma ladra!..."

O falatório, porém, não incomodou José, cuja mente se ocupava já com o problema seguinte.

Desde que Maria Imaculada o despertara para os prazeres da carne que sabia que tinha de alimentar o monstro a quem as suas calças davam apertada guarida. E certo que era Mimicas a verdadeira dona do seu coração, e que os assuntos do coração lhe pareciam de certo modo dissociados dos da carne, mas isso não fazia dela a Virgem Maria, até porque ele se chamava José e tinha responsabilidades bíblicas.

Neste capítulo, contudo, Mimicas revelou-se particularmente difícil. Começou por resistir aos beijos, intimidade que aliás nesse tempo era reservada aos mais afoitos ou às relações mais amadurecidas, o que deixou José consternado. Pois se ela montava tão acirrada resistência a uma coisa tão simples quanto um mero beijo, como seria com o resto?

Para lhe aguçar o desejo adoptou outras tácticas, como abraçá-la de modo que ela sentisse o volume que ele escondia entre as pernas. Depois passou a andar com calças de tal modo apertadas que lhe acentuavam as já de si avantajadas formas masculinas, na esperança de lhe acicatar o interesse.

No entanto, a namorada não pareceu reagir a esses incentivos, o que o deixou deveras intrigado. Estaria ele a perder qualidades? Haveria algo de errado com ela? Porque não se sentiria atraída por toda aquela virilidade que a tantas outras seduzia? Estaria alheada dos prazeres da carne? Com o tempo foi concluindo que a resposta certa a esta última pergunta era a afirmativa, e por uma razão muito simples: Mimicas mantinha-se virgem. Como nunca explorara aqueles territórios da geografia do corpo e do assunto apenas fazia uma pálida ideia, não se sentia tentada.

Pior que isso, reagia mal às investidas que ele lhe lançava com crescente despudor.

"Deixa-te dessas coisas", rematava após cada rejeição. "Vai mas é estudar!"

A noite havia sido de festa na Casa das Doroteias e, como sempre nessas ocasiões, cabia às próprias estudantes internas a responsabilidade de, no dia seguinte, proceder a limpezas e arrumações. O regulamento proibia a entrada de rapazes nas instalações, como aliás era de bom-tom e adequado a uma instituição tão respeitável quanto aquela, mas esse dia era uma excepção, até porque havia certos trabalhos que requeriam o músculo masculino.

Foi assim que, nessa ocasião, José acabou por ver-lhe abertas as portas do lar. Perguntou por Mimicas e, seguindo as indicações, foi dar com ela na cozinha.

"Deixaram-te entrar?", admirou-se a rapariga quando o viu.

"Disse-lhes que te vinha ajudar", explicou o namorado. "Foi boa, a festa?"

"Uma maravilha", exclamou com um sorriso alegre, que depressa se transformou numa expressão de comiseração. "Mas comi de mais. Estou tão arrependida..."

"O que estás a fazer?"

A moça exibiu a coluna de pratos sujos que se erguia do lavatório num equilíbrio periclitante, como uma rudimentar Torre de Pisa.

"Estou a coisar a loiça, não vês?"

"Queres ajuda?"

A pergunta suscitou espanto em Mimicas, que lhe atirou um ar desconfiado.

"Tu? Ajudares a lavar os pratos? Desde quando?"

"Desde que tu queiras. Queres ou não?"

"Claro que quero."

Mimicas deu um passo para o lado, abrindo espaço para ele também lavar a loiça, mas o comportamento do namorado deixou-a desconcertada. Em vez de se aproximar, deu meia volta e sumiu-se no corredor. Reapareceu menos de um minuto mais tarde com uma guitarra nas mãos.

Pegou numa cadeira da copa e arrastou-a até ao centro da cozinha. Depois pôs um pé sobre o assento à maneira de um conquistador, arregaçou as mangas e, em soberba pose de trovador, começou a tocar.

Eu voooou

Cantaaar

.

O Hilário,

Fadinho...

"Olha lá", interrompeu-o Mimicas, as mãos nas ancas em postura indignada. "O que estás a fazer?"

Com o tronco inclinado sobre a guitarra, uma melena castanho-escura a descair sobre a testa e os olhos colados às cordas que dedilhava com mestria, José parou de tocar e alçou até ela a expressão de surpresa que lhe acendia a face, como se a pergunta não fizesse sentido e a resposta fosse por demais evidente.

"Estou a ajudar-te a lavar a loiça."

Cedo Mimicas percebeu que José era um homem do seu tempo e, no que à cozinha e aos deveres domésticos dizia respeito, as suas responsabilidades começavam e acabavam na parte em que fazia de comensal ou se estendia no sofá. Não era pessoa para sujar nem desarrumar, mas também não limpava nem arrumava.

Não que isso incomodasse a namorada, também ela uma rapariga do seu tempo. As divisões de tarefas em função dos sexos revelaram-se um assunto consensual. Ambos se consideravam pessoas modernas e desempoeiradas, mas havia áreas em que a tradição se impunha. As lidas domésticas eram uma delas e neste particular Mimicas não conseguiu mudá-lo. Nem aliás o tentou ou sequer quis.

Se houve influência que exerceu em José foi sobretudo na prioridade dada ao curso. As manhãs de preguiça, as tardes de paródia e as noitadas de fadinho, copos e farra chegaram ao fim, assim como o desleixo nos estudos. E tudo de um momento para o outro, conduzido por Mimicas com pulso de ferro.

O sinal de que neste capítulo as coisas iam mudar foi dado logo na primeira tarde que combinaram passar juntos para estudar. O local acordado foi o Ancora de Ouro, o café preferido dos estudantes do Porto, por ser, segundo se dizia, o melhor sítio da cidade para se "rever a matéria", expressão cujo real sentido parecia diferir em função de ser escutada na boca de um rapaz ou de uma rapariga.