O Âncora de Ouro estava nesse dia, como aliás sempre, repleto de estudantes, tantos que pareciam piolhos, o que de resto valera ao café a alcunha de "O Piolho". Uma nuvem de fumo pairava sobre as mesas, tal como um burburinho incessante, e os dois recém-chegados tiveram de aguardar dez minutos até encontrarem uma mesa livre, no canto junto à parede e ao lado do quiosque, lugar habitualmente reservado aos estudantes de Medicina. Os de Ciências aglomeravam-se à entrada, como era seu hábito, enquanto os de Engenharia e os de Economia se sentavam no outro extremo, próximo do espelho.
Mimicas depositou uma pilha de livros sobre a mesa e logo que o namorado pediu os cafés pegou no primeiro exemplar e começou a folheá-lo com um lápis na mão para as anottações.
"Sabes aquela do Zequinha das Campainhas?", perguntou José.
"Hmm"
"O menino Zequinhas queria muito ser conhecido rno seu prédio por Zequinhas das Campainhas. Vivia no terceiro andar e todos os dias, quando descia para ir para as aulas, tocava à campainha do vizinho do segundo, do primeiro e do rrés-do- chão. Quando voltava à tarde..."
"Zé..."
"... tocava à campainha do vizinho do rés-do-chão, ddo primeiro andar e do segundo andar. À
tarde, à hora de ir pôr o lixo, descia e tocava à campainha do vizinho do segundo andar, do primeiro..." "Zé!"
O tom peremptório da namorada e o seu olhar severo obrigaram José a interromper a anedota.
"Não queres ouvir? Olha que tem graça!..."
"Contas-me à hora do lanche." Voltou a pegar no livro. "Vá, agora está na hora de estudar."
O rapaz ficou uns segundos a vê-la sublinhar palavras no volume que tinha em mãos.
"Não conheces a história da cigarra e da formiga?", quis saber. "Para que a formiga trabalhe é preciso que a cigarra a anime..."
"Já te armaste em cigarra no outro dia, quando eu estava a coisar a loiça. Agora é hora de te transformares em formiga." Fez sinal para os livros. "Vá, estuda."
O silêncio voltou àquele recanto. Mimicas recomeçou a ler e a sublinhar o seu livro, enquanto José tamborilava com os dedos na mesa à procura de algo que o distraísse. Passeou os olhos pelo Piolho e admirou o empregado que ziguezagueava nervosamente entre as mesas a equilibrar em cada mão duas bandejas repletas de chávenas de café.
"Já viste o..."
"Estuda!"
E foi assim, a toque de caixa e com rédea curta, que Mimicas o foi domesticando nos estudos.
Quase proibido de falar nas horas em que a namorada estudava, José percebeu que teria de ocupar esse tempo morto, sob pena de ter de aguentar tardes insuportavelmente monótonas, e passou a fazer-se acompanhar das sebentas e dos compêndios de Medicina.
"Qualquer dia", resmungou entre dentes enquanto folheava um manual de Anatomia, "até aprendo a porra do mastoideu!..."
O facto é que a fórmula funcionou e em pouco tempo José adquiriu a disciplina de trabalho que lhe faltava e que o ajudou a ganhar embalo nos estudos. Não que se tenha tornado um aluno exemplar, mas o facto é que os doze e treze valores se tornaram mais comuns do que os anteriores dez e onze, além de que deixou de ter negativas. Por outro lado, transformou-se numa espécie de papa-disciplinas. De apenas sete disciplinas passadas nos dois primeiros anos saltou para as vinte nos dois últimos anos, recuperando completamente o atraso. E certo que as cadeiras eram agora sobretudo práticas, o que ia mais de encontro aos seus interesses, mas isso não impediu que a mudança tivesse sido mirabolante.
O problema é que Mimicas teimava em recusar-lhe os avanços da carne, por mais persistentes que fossem os seus argumentos e imaginativas as suas tentativas.
"Vá lá, só desta vez", dizia sempre que passava mais uma disciplina. "E um premiozinho..."
"O prémio é o curso que vais tirar à custa do estudo."
A resposta de Mimicas tornou-se exasperante e o namorado já não sabia o que havia de fazer à frustração que se lhe acumulava no corpo. O monstro que escondia entre as pernas exigia-lhe aquilo a que se habituara com Maria Imaculada e não reagiu bem à dura provação, sendo que
"dura" é decerto a palavra mais adequada para descrever a situação que vivia.
"Mas porquê? Porquê?"
"Já te disse", repetiu ela vezes sem conta. "Essas coisas só depois do casamento."
José já percebera que a namorada era tão inexperiente que parecia ter apenas uma vaga ideia do que a expressão "essas coisas" significava exactamente. Mas isso, longe de o consolar, desesperava-o ainda mais. Ninguém deseja o que desconhece, pelo que não tinha modo de lhe demonstrar que o fruto que naquele instante ela desdenhava era daqueles capazes de levar à loucura qualquer outra.
Como fazer-lhe entender isso?
Foi a meio do quinto ano, quando sentiu que já não suportava mais tempo a longa abstinência, que tomou a decisão. Decorria o Inverno e José tinha ensaio no Orfeão durante toda a tarde, pelo que ficou combinado que depois das aulas Mimicas iria ter com ele.
Tudo correu normalmente à hora marcada, com a rapariga a entrar na sala de concertos e a sentar-se num canto do fundo enquanto os orfeonistas terminavam de ensaiar uns fados de Coimbra. A fase final do ensaio não excedeu a meia hora. Mimicas mantinha os ouvidos na música e os olhos na sebenta, espreitando ocasionalmente o namorado para o ver dedilhar a guitarra ou escutá-lo a cantar umas estrofes.
O ensaio terminou por fim e o grupo dispersou-se rapidamente. Já se fazia tarde e a hora do jantar aproximava-se. Mimicas levantou-se do seu lugar e abeirou-se do palco para acolher o namorado. O problema é que José se demorou tanto a guardar a guitarra que só ficou pronto quando os outros saíram. Foi então que fez uma coisa inesperada. A rapariga viu-o varrer a sala com o olhar, aparentemente para se certificar de que se encontravam sozinhos, e depois virar as costas à plateia vazia, como se não tivesse qualquer intenção de abandonar o palanque, e sentar-se ao piano.
"O Zé", impacientou-se Mimicas, "o que estás a coisar?"
"É só mais uma musiquinha."
"Despacha-te! Tenho uma fome de lobo!"
"Senta-te e escuta", recomendou ele. "O que vou agora tocar é dedicado a ti."
A rapariga respirou fundo e, enchendo-se de paciência, acomodou-se numa cadeira da primeira fila. Anoitecera e já estava ansiosa por se instalar à mesa para jantar; ainda por cima o ensaio impedira-a de lanchar. O comportamento misterioso do namorado, porém, deixou-a intrigada.
Teve uma certa curiosidade de saber que música era aquela que justificava tal encenação.
Com ares de dono do palco, José contemplou um longo momento o imponente piano de cauda, como se o quisesse seduzir e tivesse todo o tempo para o fazer, abriu os braços à maneira de um pássaro que se preparasse para se lançar no vazio e, respirando fundo, baixou devagar as mãos sobre a fileira de teclas macias. Dava a impressão de estar hipnotizado pelo reluzir delicado do marfim que cobria as teclas brancas no contraste com o ébano que adornava as negras. O tronco do rapaz vacilou no derradeiro instante de silêncio, no que parecia um frémito de prazer antecipado, e ao pousar enfim os dedos nas teclas, como se as quisesse acariciar, extraiu delas os primeiros sons, notas fortes e ritmadas de uma melodia solene que Mimicas identificou nos primeiros segundos.
A marcha nupcial.