Casaram-se no Verão. A data foi escolhida para aproveitar a viagem à Metrópole da mãe de Mimicas, funcionária dos Correios no Mindelo que gozava esse ano uma licença graciosa.
A cerimónia decorreu na pequena capela de Singeverga, o mosteiro beneditino de Santo Tirso, cujo abade era o primo Gabriel. Foi este familiar de José, aliás, quem celebrou a missa e consagrou o matrimónio, tudo feito em obediência à tradição, aos bons costumes e aos cânones dos casamentos das boas famílias católicas do Norte de Portugal. A família em peso marcou de resto presença, incluindo os primos afastados que vieram de Trás-os-Montes. A excepção foi a irmã Lourdes, que casara quando José fora para a universidade e entretanto havia seguido para Angola com o marido e os filhos, que lhe começaram a nascer em rajada.
O noivo viveu a cerimónia num estado de excitação latente. Os pruridos vitorianos de Mimicas constituíram uma espécie de voto de castidade que se prolongou por todo o tempo de namoro e que tornaram mais apetecível o prazer supremo de que ela tão zelosamente o privara. Houvera momentos em que José se sentira de tal modo desesperado que considerara até a possibilidade de romper a relação, mas, logo que os calores do monstro arrefeciam, caía em si e rejeitava liminarmente a ideia. A namorada era a sua primeira paixão, na verdade a única que tivera, e intuía que perdê-la seria um desastre do qual jamais conseguiria recuperar.O casamento trouxe-lhe a solução para o problema. Se tinha já percebido que aquela era a mulher da sua vida, porquê adiar o inevitável? De resto, alimentava a mais profunda convicção de que, logo que provasse o fruto que até aí havia tão insensatamente desdenhado, Mimicas despertaria de vez para os prazeres por ela desconhecidos. E esse despertar, não o esquecia em instante nenhum, iria suceder dentro de apenas algumas horas, quando abandonassem o copo-d'água no Mosteiro de Singeverga e fossem para o hotel do Porto onde passariam a noite de núpcias.
A perspectiva do fim do longo jejum deixou o monstro em estado de alerta máximo desde manhã. José não o podia controlar e teve de suportar toda a cerimónia na capela e depois no salão onde decorreu o copo-d'água com um descomunal e embaraçoso chumaço a atrapalhar-lhe o andar, pormenor por demais embaraçoso e evidente para todas as senhoras presentes na capela e objecto de inúmeros sussurros de indignação e não poucos suspiros de cupidez. Se não de observação directa, pelo menos de reputação, quase todas as mulheres presentes estavam a par dos valentes atributos com que o noivo havia sido abençoado pela natureza, ou talvez até pelo próprio Senhor, na Sua infinita munificência.
Muitos foram por isso os olhares de cobiça feminina lançados ao longo das cerimónias do casamento na direcção daquele volume tão inconvenientemente protuberante nas calças do smoking do noivo em hora tão solene. Mas, mais do que cobiça, o que aqueles esgares denunciavam era uma incontrolável inveja da até aí casta Mimicas, a quem a inocência e a candura providencialmente mantinham na ignorância do que a sorte lhe destinara por via daquela união.
O copo-d'água pareceu ao noivo interminável, tão curta era a sua paciência e tão grande a vontade de pôr fim ao longo jejum do corpo. Como era natural e de elementar bom gosto, os convidados evitaram fitar-lhe ostensivamente o ventre dilatado, por maior que fosse a tentação e o efeito de atracção magnética que exercia sobre os seus olhos, e procuraram distrair a mente e enganar a tentação com perguntas sobre os seus planos de vida.
Uns queriam saber se iria estabelecer-se no Porto, outros perguntavam-lhe se planeava abrir consultório em Penafiel, houve até quem sugerisse que fossem para Castelo de Paiva, e a todos se foi esquivando com respostas mais ou menos evasivas.
No entanto, quando foi o pai a lançar-lhe as mesmas perguntas, ou outras do género, não viu modo de se furtar às respostas. O capitão Branco era ainda quem lhe pagava as contas. Além disso era o pai, e como se poderia esquivar às perguntas que o pai tão legitimamente lhe fazia?
"Nem Porto nem Penafiel", retorquiu, abrindo enfim o jogo quanto aos seus planos. "Vou para Lisboa."
"Lisboa?", admirou-se o pai. "Fazer o quê? Não estás melhor aqui no Norte, ao pé da família?
Para que precisas tu de ir lá para baixo?"
"Para tirar a minha especialidade", esclareceu José. "Não existe cá no Porto."
O capitão lançou ao filho uma expressão intrigada, até desconfiada.
"Que raio de especialidade é essa que só existe em Lisboa? Preguiçatria?"
"Medicina Tropical."
A desconfiança cedeu lugar ao pasmo.
"Isso não é paludismo e febre-amarela e coisas do estilo? Para que queres tu tirar Medicina Tropical? Que eu saiba essas doenças esquisitas não existem por cá..."
"Pois não. Mas existem no sítio para onde quero ir."
O pai arregalou os olhos, tomando finalmente consciência do que José tinha em mente.
"Não me digas que vais para o Ultramar?!"
O rosto do filho abriu-se num largo sorriso luminoso, como o de uma criança a quem se exibe um caramelo.
"Moçambique."
Parte Dois
Purgatório
Por aqui não se passa Sem que se sofra o
calor do fogo durante um tempo prolongado cortou o ar, ao mesmo tempo alegre e sorumbático, e o casal Branco despediu-se da multidão que acenava do cais. Não que José ou Mimicas conhecessem alguma das centenas de pessoas que se acumulavam em Alcântara para dizer adeus aos que partiam; sempre tinham visto nos filmes americanos as largadas dos paquetes serem feitas de acenos efusivos e não se sentiriam verdadeiros viajantes transatlânticos se não participassem naquele ritual coreográfico.
O casario branco de telhados vermelhos parecia abraçar o vasto lençol de água, sereno e prazenteiro, mas foi ficando mais pequeno à medida que o Infante D. Henrique se retirava com imponência do Tejo e ia deixando Lisboa esfumar-se para trás. Levantou-se então uma brisa salgada, fresca e desagradável, e Mimicas, sempre friorenta, apertou a aba do casaco para se proteger.
"Está frio, Zé", queixou-se. "Vamos lá para dentro."
Por esta altura já a maior parte dos passageiros se havia recolhido ao interior, devidamente aquecido em todos os compartimentos. O casal seguiu-lhes o exemplo e foi explorar o magnífico navio. O Infante D. Henrique era a jóia dos paquetes da carreira de África, embarcação de linhas elegantes e modernas e interior de um luxo nunca visto; o transatlântico acabara de se estrear e revelava-se tão soberbo que havia quem o criticasse por ser "bom de mais".
"Que maravilha!", repetia Mimicas sempre que se deparava com um novo pormenor rutilante do esplêndido navio. "Mas que maravilha!"
O marido havia adquirido bilhetes de primeira classe para celebrar condignamente o virar de página nas suas vidas e ambos fruíram o momento com a consciência de que o deveriam saborear em pleno. O prazer começou logo no vestíbulo da classe, um espaço decorado com uma estátua do infante D. Henrique de bronze revestido a ouro e com uma pintura do planisfério de Mecia de Viladestes como imagem de fundo.
"Sabes o que mais me impressiona?", observou Mimicas ao descer a majestosa escadaria do átrio central. "A estabilidade. Se olhares lá para fora vês que o mar está agitado, não é? Mas aqui... chiça!, até parece que estamos em terra!..."
"É dos estabilizadores", explicou o marido com ar de entendido, embora se limitasse a papaguear o que lera num folheto da Companhia Nacional de Navegação. "É um sistema avançado que neutraliza o balanço da ondulação."