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Percorreram o paquete de uma ponta à outra, incluindo os sectores das classes turística A e turística B, e em duas horas visitaram os quatro grandes salões, os três restaurantes, a biblioteca, a sala de escrita e, curiosidade de médico, até o hospital. Por toda a parte o casal se deparou com uma decoração requintada em espaços amplos e bem iluminados, as grandes janelas a abrirem-se para o oceano imenso, como se o mar fosse um quadro e o navio o museu que o exibia.

O passeio prolongou-se até ser interrompido por um esgar de Mimicas.

"Estou com larica...", queixou-se. "Quando é que se coisa?"

O marido consultou o relógio.

"O jantar? É agora."

Depois de uma rápida passagem pelo camarote, situado na segunda vigia a estibordo, para mudarem para trajos mais selectos, subiram ao restaurante e acomodaram-se nos assentos que lhes foram designados para o jantar. Na mesa estavam já os dois casais que lhes fariam companhia ao longo de toda a viagem, uma vez que era política do Infante D. Henrique sentar os comensais sempre nos mesmos lugares; parece que isso facilitava o serviço. Além do casal Branco, aquela mesa juntava o casal Silva e os dois filhos e o casal Rouco.

"Sabem o que isto me faz lembrar?", perguntou o médico depois de se instalar. "Um paquete da linha Cunard!"

"Qual Cunard? A do Titanic?"

O gracejo foi atirado por Domingos Rouco, que com a mulher formava a parelha mais exótica do navio. Domingos era um homem corpulento e tranquilo; vestia um fato de linho claro que, embora de bom corte, lhe acentuava a imensidão do corpo. Já a mulher, Albertina, era uma rapariga pequena e magra, de cabelo curto e com um olhar agitado a saltitar pela mesa. Não poderia haver casal mais contrastante: ele grande e sereno, ela minúscula e nervosa. Mas o que os tornava realmente singulares é que Domingos era negro e Albertina branca.

"Sim", riu-se José Branco. "Mas sem icebergues."

"Nestas águas não há esse perigo", devolveu Domingos, lançando um esgar mordaz na direcção do casal Silva. "Aqui é mais tubarões!..."

Silva estreitou os olhos e espiou Domingos com uma expressão indefinida. Era um homem pequeno de cabelo liso e olhar arguto, talvez até desconfiado, que respondeu por monossílabos evasivos quando o médico quis saber o que fazia na vida.

"Sou polícia."

De si nada mais revelou, a não ser o seu nome próprio, Aniceto, o da mulher, Graciete, e que era nascido no Porto, "mas adepto do Benfica", afinidade importante que encheu as conversas monotemáticas que manteve à mesa o resto da viagem com José Branco.

Como os quatro Silva, os pais e os dois filhos, eram mais de ouvir do que de falar, os Branco aproximaram-se dos Rouco e o que se passou entre os dois casais foi um caso de simpatia à primeira vista.

"Este barco é realmente espantoso", observou Albertina. "Já passaram pela capela?"

A pergunta extraiu uma expressão surpreendida de Mimicas.

"Ai sim? Existe uma capela? Com coiso e tudo?"

"Duas capelas. E, imaginem!, os altares de ambas são feitos com pedra do promontório de Sagres."

"Ah! Que maravilha! Eu e o Zé percorremos o paquete de fio a pavio mas não as vimos. Onde são? Não me digam que é depois do... do coiso."

"Esta noite levamos-vos lá para verem."

"Esta noite não, que há bingo", disse Mimicas. "Que tal amanhã de manhã?"

"Só se for à tarde. De manhã quero ir ao cabeleireiro."

"O quê? Também há cabeleireiro?"

"Não sabia? Ai que não viu bem o paquete! Olhe, se quiser vamos juntas."

Mimicas passou as mãos pelo cabelo, testando-lhe o volume.

"Combinado."

Os dois casais tornaram-se inseparáveis ao longo do resto da viagem. Encontravam-se pela manhã na piscina do paquete, davam à tardinha passeios pelo deck e depois do jantar juntavam-se nas jogatinas que se desenrolavam no salão de jogos.

Pelo fio das conversas percorreram a vida de cada um e foi assim que o casal Branco soube que Domingos Rouco tinha nascido em Inhambane, estudado em Tomar e tirado Direito na Universidade de Lisboa. Havia-se cruzado na faculdade com Albertina, a alentejana com quem casara dias antes de embarcar no Infante D. Henrique, e estava de regresso a casa para ir trabalhar em Lourenço Marques como consultor jurídico do Banco Nacional Ultramarino.

"Existem muitos juristas... uh... moçambicanos?"

A pergunta foi feita por José Branco uma manhã, já depois das escalas no Funchal e no Príncipe, e quando o paquete deslizava pelas águas quentes do golfo da Guiné rumo a Luanda. Mimicas e Albertina tinham ido para a biblioteca e deixaram os dois homens estendidos nas espreguiçadeiras junto à piscina.

"Quando dizes moçambicanos", observou Domingos Rouco com um leve sorriso irónico,

"presumo que te estejas a referir a negros."

O médico engoliu em seco; era a primeira vez que aflorava a questão racial nas conversas com o novo amigo.

"Pois... sim, é isso."

Domingos enlaçou as mãos por trás da cabeça e, esticado na espreguiçadeira, fitou o céu. O

tempo estava ameno e o imenso azul-claro do firmamento matinal era apenas rasgado por um ou outro farrapo de nuvens.

"Sou o primeiro advogado negro de Moçambique."

"A sério?"

"E verdade. E sou apenas o segundo negro moçambicano a tirar um curso superior."

A revelação deixou José Branco pensativo. Sempre supusera que os africanos eram gente primitiva, à semelhança do primeiro negro que vira na vida, o homem seminu exibido num pavilhão africano da Exposição do Mundo Português. Essa imagem fora reforçada ao longo do tempo pelas fotografias das revistas, pelo cinema e até pela expressão indígena, usada amiúde para descrever os povos de África.

O encontro com Domingos na mesa de jantar da classe no melhor paquete da Companhia Nacional de Navegação obrigou-o a rever o que até ali dava como certo. Os indígenas podiam afinal ser doutores? E porque não? Com base naquele exemplo passou a imaginar que haveria decerto outros casos semelhantes em Moçambique. A constatação forçou-o a retornar à primeira imagem, a do negro seminu da exposição, o que, percebeu, o deixava desconfortável. Domingos era tudo menos um primitivo; revelava-se aliás muito mais inteligente, culto e bem- falante do que a esmagadora maioria dos brancos que conhecia.

"Estás, portanto, a desbravar caminho", observou o médico. "Atrás de ti virão com certeza outros."

Domingos soltou uma gargalhada.

"Talvez alguns. Mas, para ser franco, nunca passaremos de um punhado."

"Não sei porquê."

"Por causa do racismo, Zé."

O médico passou a mão pelo queixo, na dúvida sobre se deveria aceitar aquela afirmação ou contestá-la.

"Sempre ouvi o regime dizer que Portugal vai do Minho a Timor e que todos os seus habitantes, independentemente da cor ou do credo, são Portugueses. Não me parece um conceito racista."

"Digamos que eles alindaram a coisa", observou Domingos. "Mas isso não passa de uma mistificação, claro. Se todos somos igualmente portugueses, por que razão sou apenas o segundo negro moçambicano a tirar um curso superior? E por que razão, se são portugueses como os outros, os negros se vêem discriminados? É óbvio que essa conversa não passa de propaganda barata."

"Há muito racismo em Moçambique?"

O advogado ergueu o tronco, apoiando-se nos cotovelos.

"Oh! Então não há?! De um ponto de vista formal, Portugal não parece ser um país racista.