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Aceito até que se diga que os Portugueses são o povo menos racista que se pode encontrar na Europa. Mas o racismo existe nos costumes, no tratamento do dia-a-dia e também, de uma forma subrreptícia, na própria lei."

"Na lei como?", admirou-se José Branco. "Existe alguma lei, por exemplo, que diga que um branco pode fazer uma coisa e um negro não pode?"

"Não", acedeu Domingos. "Não existem de facto leis especiais para brancos ou negros."

"Mas nos Estados Unidos existem, como sabes. Eles até têm leis raciais e espaços públicos onde os negros não podem entrar."

"Pois, isso não existe formalmente em Moçambique, é verdade. Mas olha que acontece na prática. Há escolas em Lourenço Marques só frequentadas por brancos, por exemplo. De um ponto de vista jurídico, no entanto, a coisa funciona de outra maneira: faz-se a discriminação racial pela via da discriminação por classes sociais."

"Não estou a perceber..."

"É muito simples. Qualquer negro pode ter os mesmos direitos de um branco desde que faça prova de que é civilizado. Chamam-nos assimilados. Um negro tem de provar que goza de estabilidade económica e de um nível acima da média portuguesa. Tem de viver como um europeu, pagar impostos, cumprir o serviço militar e ler e escrever correctamente o português. Se fizer tudo isto, será classificado como assimilado e terá os mesmos direitos que um branco."

"Como acontece contigo."

"Sim, eu sou um assimilado."

O médico esfregou o queixo, considerando o que acabara de ouvir.

"Bem, assim à primeira vista isso até faz sentido. Uma pessoa que vive numa palhota e anda na rua de tanga dificilmente se poderá considerar civilizada, não te parece?"

Domingos sentou-se na espreguiçadeira e ajeitou o boné de modo a garantir que a pala lhe protegia os olhos do sol.

"Achas que sim?", perguntou o advogado em tom retórico, como se fosse de repente transportado para a barra do tribunal e tivesse acabado de apanhar uma testemunha em falso.

"Então deixa-me explicar-te uma coisa. Eu tenho vivido estes últimos anos na Metrópole. Estudei em Lisboa, a grande cidade, mas também em Tomar, onde tive contacto com a realidade da província. Sabes o que vi? Um país atrasado. As estatísticas mostram que quarenta por cento dos Portugueses são analfabetos e que o nível de vida de que gozam é o mais baixo da Europa.

Quer isto dizer que, se submetessem os metropolitanos aos critérios civilizacionais que se aplicam em África para reconhecer os assimilados, quase metade dos Portugueses não teria sequer direito ao estatuto de assimilado! Estás a entender isto?"

José Branco esboçou uma expressão desconcertada.

"Pois...", gaguejou. "Quer dizer, visto desse prisma... realmente!..."

"Então porque se aplica a distinção entre assimilado e não civilizado em África?", questionou.

"Porque não se aplica a mesma distinção na Metrópole? A resposta só pode ser uma: essa distinção é racial."

O médico assentiu; era a primeira vez que reflectia no problema desse ângulo.

"Admito que sim. De qualquer modo, tens de reconhecer que existe uma influência civilizadora de Portugal em África."

Domingos riu-se.

"Olha, vou contar-te uma história", disse, mudando de tom. "Lá em Inhambane existia um tipo que veio da Beira Interior e que montou uma farme no meio do mato. O gajo trouxe lá das berças a mulher e pôs-se a criar gado em Moçambique. Sabes quem é que lhe lia a correspondência e lhe escrevia as cartas? O criado! O preto tinha estudado numa missão católica e sabia ler e escrever, mas o patrão não."

"A sério?"

"A África portuguesa está cheia disto, Zé! Os colonos metropolitanos não têm cultura, não têm instrução e não têm dinheiro. Se se partir do princípio de que os povos de maior civilização devem colonizar os povos pouco civilizados, então Portugal tem também de ser colonizado! Só por milagre um país assim consegue ter uma influência civilizadora sobre quem quer que seja."

Foi a vez de José Branco se erguer da espreguiçadeira e se sentar.

"Espera aí!", atalhou. "Que eu saiba isso mudou! Não existe uma lei que impede a ida para África de indivíduos que não tenham pelo menos a terceira classe?"

"Existe sim", confirmou o advogado. "A emigração de analfabetos até pode ter diminuído, mas olha que não parou. A questão, porém, é que Portugal é um país atrasado que anda armado em grande civilizador." Encolheu os ombros. "De qualquer modo isso é lateral para o tema do racismo.

O problema central é que os negros são discriminados na sua própria terra. Repara: apenas 0,3 por cento da população negra da África portuguesa é considerada assimilada. Os restantes 99,7 por cento são descritos como não-civilizados. Ora o que prevê a lei para os não civilizados? Nada. O

que quer dizer que eles têm tantos direitos como... como o gado, por exemplo. A administração colonial pode pegar num não civilizado e forçá-lo a trabalhar, se quiser. Ou pode exportá- lo para a África do Sul como mão-de-obra, como se fosse uma máquina. Com este tipo de comportamento, como se pode esperar que as pessoas não se revoltem?"

Esta última pergunta, embora retórica, ficou a revolutear no ar, carregada de insinuações.

"Estás a referir-te a quê?", perguntou José, admirado. "Houve alguma revolta?"

"Claro que houve uma revolta. As pessoas não podem aceitar certas coisas!.."

"Mas quando é que houve revolta? Onde? Nunca ouvi falar nisso..."

"Nunca ouviste falar porque não convém ao regime que se fale", argumentou Domingos. "Mas aconteceu o ano passado em Moçambique. Os agricultores macondes protestaram lá no Norte, em Mueda, e a tropa portuguesa abriu fogo sobre a multidão. Morreram seiscentas pessoas."

O médico esboçou uma expressão incrédula.

"A tropa matou seiscentas pessoas no ano passado?"

"Sim, senhor!"

"Seiscentas? Contaram os cadáveres um a um?"

A pergunta atrapalhou o advogado.

"Bem... não."

"Então como sabem que morreram seiscentas pessoas?"

"Pela contagem do número de bicicletas abandonadas."

A incredulidade do olhar de José deu lugar a um esgar carregado de cepticismo.

"Desculpa, mas não me parece um método lá muito fiável para contabilizar mortos", observou.

"Quantos cadáveres foram efectivamente identificados?"

"Acho que dezassete", admitiu Domingos. "Mas, seja qual for o verdadeiro número, foi uma revolta. E resultou numa matança de civis inocentes."

O amigo assentiu.

"Se é como dizes, foi um crime. E um crime é um crime, independentemente do número de vítimas envolvidas. Mas, apesar de tudo, tens de concordar que é diferente matar dezassete e matar seiscentas pessoas."

"Não discuto", aceitou o advogado. "O que é importante que percebas é que a iniquidade da situação provoca revolta. O que aconteceu no ano passado em Mueda pode voltar a..." Hesitou, o olhar fixo num ponto distante. "Atenção, elas vêm aí."

O médico olhou na mesma direcção e viu Mimicas e Albertina a caminharem pelo deck com dois romances policiais nas mãos. Voltou a estender-se na espreguiçadeira e, sentindo o sol queimar- lhe a face, inclinou o guarda-sol em busca da sombra protectora.

"é melhor mudarmos de conversa", aconselhou José. "Elas podem ficar nervosas."

"Tens razão. Mas, considerando o facto de que vocês vão agora viver para Moçambique, há uma coisa de que preciso de te avisar."

"O quê?"

Domingos avaliou a distância a que se encontravam as duas mulheres. Eram uns vinte metros, não mais. Aliás, já lhes ouvia as vozes tagareleiras, com Mimicas a fazer três referências de rajada ao "coiso". Teria de ser rápido a dizer o que pretendia.