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Essa impressão, para sua surpresa e alegria, confirmou-se nos dias seguintes. Amélia, antes à deriva num recanto da mente onde só ela entrava, tornou-se visita assídua do santuário. O capitão começou então a perceber que a mulher se agarrava à religião com a força do desespero, como se a cruz fosse uma bóia. Amélia passou a assistir a duas missas por dia e a benzer-se amiúde; expressões como "graças a Deus!" e "queira Nossa Senhora!" tornaram-se muletas permanentes das suas conversas. Era uma mudança radical, mas o marido não ficou inteiramente descontente.

Afinal viver com uma mulher devota era preferível a ter um espectro lacrimejante a assombrar-lhe a casa.

O problema é que a súbita devoção de Amélia não parou por ali. A Bíblia tornou-se a sua companhia de leitura permanente e a mulher pôs-se a dedilhar o terço sem cessar, rodando-o nas mãos ao ritmo de uma ladainha sussurrada que parecia não lhe largar os lábios trémulos. O fervor religioso revelou-se a certa altura tão intenso que o capitão, embora homem católico e respeitador da Igreja e dos bons costumes, começou a achar tudo aquilo de mais.

"Este padre Jacinto é diabólico", observou certo dia no quartel. "Transformou-me a patroa numa beata!"

No meio das mudanças súbitas e inexplicáveis operadas em Amélia, os filhos acabaram por ser negligenciados. Atento ao problema, o capitão redobrou o zelo protector em relação às quatro crianças e passou a acompanhá-las mais de perto. Mário Branco acreditava firmemente nas virtudes da educação; administrava a casa com a disciplina de um general e educava os filhos com a dedicação de um mestre-escola.

Tornou-se um homem muito paciente. Contrariamente à tradição do seu tempo, era raro bater nas crianças e mostrava-se sempre disponível para falar com elas e responder-lhes às perguntas, até para discutir as notas da escola ou do colégio. A sua voz de trovão intimidava, é certo, o mesmo acontecendo com a severidade que sabia imprimir ao olhar; bastava captar-lhe a expressão para se saber o que estava certo e o que era errado. O seu jeito atencioso, porém, tudo parecia compensar; não se tratava de homem de abraços nem de beijos, mas parecia ter o dom da palavra certa.

A bola vermelha rolou pelo fino tapete verde, ricocheteou no limite da mesa e foi direitinha para o buraco, por onde se meteu a rodar como um pião.

"Caramba!", exclamou o juiz Brandão, cofiando o bigode. "O senhor está hoje imparável!"

O capitão Branco lançou um olhar fugaz ao pequeno José, querendo certificar-se de que o filho mais novo admirara a jogada. Depois assentou o taco na vertical e esfregou um pouco mais de giz na ponta, desviando os olhos para a mesa de modo a estudar a jogada seguinte.

"Faz-se o que se pode, meu caro. Faz-se o que se pode."

Naquele final de tarde, e apesar de se encontrarem na reserva, os militares e o juiz haviam-se juntado como de costume no primeiro andar do clube dos oficiais, revoluteando como borboletas em torno da grande mesa de bilhar que ocupava o centro da sala. O jogo era seguido distraidamente pelo filho, que o capitão levara consigo para o retirar do bocejo em que se transformava a casa quando os irmãos iam para a escola e a mulher definhava em rosários e outras beatices. A sala de jogos do clube estava cheia àquela hora, embora os restantes oficiais se entretivessem sobretudo em partidas de gamão e de xadrez, que decorriam nas mesinhas dispostas em redor da mesa de bilhar. „

Mas o que tornou realmente memorável esse final de tarde foi a entrada de rompante de António, o funcionário dos Correios que àquela hora trazia sempre o jornal encomendado pelo capitão Branco. António vinha esbaforido e agitava na mão o periódico, que todos reconheceram pelo inconfundível cabeçalho, a identificar O Comércio do Porto.

"Ena, Tónio!", admirou-se o capitão Branco. "Que pressa é essa, rapaz?"

"Ah, senhor capitão!", exclamou António, ofegante. "Chegou O Comércio do Porto!"

O rapaz dos Correios fazia dançar o matutino entre uma mão e a outra, como se o papel queimasse. Os oficiais fixaram os olhos no jornal saltitante, sem entenderem toda aquela excitação.

Conseguiram perceber que havia um mapa da Europa desenhado no topo da primeira página, mas António abanava tanto o exemplar de O Comércio do Porto que não lograram captar- lhe os títulos.

"Pois isso já eu percebi, Tónio. E então? Vem aí a notícia de que as galinhas já têm dentes?"

Os oficiais riram-se, mas António permaneceu especado diante da mesa de bilhar, os olhos muito abertos.

"Não."

A risada morreu naturalmente.

"Então, rapaz?", perguntou o capitão Branco, sempre de ar bem-disposto. "O que foi?"

António pegou no jornal com as duas mãos e mostrou-lhes enfim a primeira página.

"São os Alemães, senhor capitão. Entraram na Polónia."

O almoço foi pesado e o capitão Mário Branco decidiu digeri-lo com a ajuda de um copo de vinho do Porto. Espreitou o relógio e constatou que era quase chegada a hora; foi para o sofá, girou a antena para a posição de onda curta, ligou o rádio e aguardou que as vozes distantes rasgassem a estática e lhe dessem notícias do mundo. Não teve de esperar mais de um minuto. O monótono

crrrrrrr do éter foi bruscamente interrompido por um sinal, parecia que alguém tinha apitado, e depois por uma pausa repousante; emergindo do súbito silêncio, como se um visitante falasse do fundo do corredor, ouviu-se uma voz ondulada e pausada.

"Daqui Londres. Esta é a BBC."

A escuta das emissões da BBC era um acto proibido em Portugal, mas o capitão Branco, embora católico obediente e patriota acima de qualquer suspeita, não queria saber de interdições absurdas.

Não eram os Ingleses os maiores e mais antigos aliados de Portugal? Não haviam estado, os nossos soldados e os deles, lado a lado em incontáveis batalhas e jamais em campos opostos como inimigos? Que disparate era aquele de não sepoder ouvir a voz de Inglaterra? Quem seria o inteligente que tomara tão insensata decisão?

Escutar a BBC tornara-se assim um acto de rotina naquela casa, as emissões em onda curta acompanhadas religiosamente duas vezes por dia, uma depois do almoço, outra após o jantar. Não se tratava de uma atitude de desafio; não era essa a postura do capitão. Ele pretendia simplesmente saber o que se passava no mundo, sabê-lo através de uma voz em que confiasse, e não conseguia entender qual o mal de ouvir o que dizia o velho aliado de Portugal. Um informador chegara a denunciar estas escutas ilegais do distinto oficial, mas a hierarquia encolheu os ombros e olhou para o lado; a verdade é que ninguém de bom senso se atrevia a incomodar o capitão Branco por causa de uma ninharia como querer saber as notícias, para mais estando ele já na reserva.

"A BBC fala e o mundo acredita", sentenciou a voz libertada pelo altifalante do rádio.

O oficial reconheceu a dicção pausada de Augusto Silva, o seu locutor favorito, e inclinou o ouvido para o altifalante. Entrou no ar o que parecia uma marcha; tratava-se do separador identificativo da estação britânica.

Foi nesse instante que o pequeno José se aproximou do pai com ar queixoso.

"Ó pai! O mano..."

"Está declarado o estado de guerra entre a Inglaterra e a Alemanha. O senhor Neville Chamberlain..."

"... escondeu o pau que eu..."