"Chiuuuu!", cortou o capitão, os olhos arregalados, mandan- do-o calar com tal veemência e fúria que José se assustou. "Silêncio!"
Fez-se um súbito vazio em toda a casa; não era hábito o capitão dirigir-se a alguém da família de modo tão brusco. No meio do abrupto mutismo geral, apenas a voz de Augusto Silva permaneceu imperturbável, reverberante no silêncio pesado que ali se instalara, jorrando autoritária do altifalante com notícias de provocar pasmo e medo.
"... leu esta tarde uma comunicação ao país a informar os súbditos ingleses de que o senhor Hitler não aceitou um ultimato entregue ontem de manhã pelo governo de Sua Majestade em Berlim, a exigir que as forças alemãs retirassem imediatamente da Polónia. Em consequência, disse o senhor Chamberlain, a Inglaterra está em guerra com a Alemanha."
O noticiário durou longos minutos, mas pareceram poucos perante o muito que havia para dizer. Apenas a voz de Augusto Silva soava na casa dos Branco, trazendo notícias do inferno mesmo ali às portas. Quando por fim o locutor se despediu, com a solenidade que o momento requeria, apenas se ouviu na sala mais um clique, provocado pelo capitão ao desligar maquinalmente o rádio.
Abateu-se nesse instante por toda a parte um silêncio pesado, aquele silêncio profundo e ensurdecedor que pousa sobre os homens nos momentos de grande gravidade. Era como se uma nuvem negra e densa tivesse assentado sobre o mundo, sinistra e maléfica, asfixiando a luz que o fazia viver, mergulhando-o numa vasta sombra; a vida era o Sol, mas a rádio fora o arauto do crepúsculo, esse efémero instante em que o dia se apaga no fio do horizonte e sobre todos se deita o manto escuro da noite, aos poucos, devagar, como uma chama que se extingue lentamente, até se instalar enfim por toda a parte uma treva opaca e nefanda.
Tlim-tlim-tlim.
O toque da sineta na porta fez Beatriz sair disparada da cozinha e descer as escadas para saber quem era. Instantes mais tarde a figura austera e pançuda do juiz Brandão irrompeu pela sala como se da sua intervenção dependesse o destino do mundo. Atrás dele vinha a sua protegida Joana, que voltara a acolher quando a pobre rapariga enviuvara.
"Ó Branco!", chamou o juiz. "Branco! Você ouviu as notícias?"
O capitão ergueu-se pesadamente do sofá, de onde não saíra desde que, uma hora antes, terminara o noticiário da BBC.
"Então não ouvi?!"
O juiz estacou diante dele e olhou-o com expectativa, como se esperasse que o oficial tivesse o poder de neutralizar um acontecimento tão grave.
"E o que me diz disto?!"
O capitão abanou a cabeça, a fronte carregada de preocupação.
"Olhe, tenho estado aqui a matutar no assunto..?
"E então?"
"Acho que isto é um grande sarilho."
"Acha mesmo?", disparou o juiz, alarmado com a impotência que lia no rosto do oficial.
"É como em 14-18. De um lado a Inglaterra e a França, do outro a Alemanha e a Áustria. Vai ser uma nova calamidade!"
"Mas este Hitler não tem juízo? O que quer ele afinal? Acabar com o mundo? Não chegou a Grande Guerra?"
"Ele é um homem agressivo, meu caro. Uma pessoa correcta, sem dúvida, mas muito agressiva.
Foi longe de mais e agora meteu toda a gente num grande sarilho."
A tensão era palpável devido à memória do que fora a Grande Guerra. Ainda a tentar refazer-se do choque, o juiz instalou-se no sofá e o anfitrião, conhecedor dos gostos do visitante, foi- lhe preparar um cálice de vinho do Porto.
Aproveitando a pausa na conversa entre os homens, Joana quebrou o seu mutismo.
"A minha irmã?"
"A Amélia está a descansar no quarto com o Zezinho e a Lourdes."
A cunhada meteu pelo corredor e foi ter com Amélia, deixando os homens a sós. Com a garrafa de porto na mão, o capitão Branco ficou a vê-la desaparecer para além da porta do quarto. Depois encheu o cálice e estendeu-o na direcção do juiz.
"Como vai a sua protegida?"
"Menos mal, menos mal", disse o visitante, pegando no cálece. "Sabe, o mais difícil parece já ter passado. Desde que ela voltou de Trás-os-Montes e se instalou de novo lá em casa que tem andado mais alegre, coitadinha. Depois do que aconteceu a moça não podia ficar sozinha, não é?"
"Além do mais, tem cá a irmã."
"Ah, sim!", concordou o juiz. "Isso é muito importante! Têm ido as duas à igreja e sem dúvida que isso lhes faz bem. Mas às vezes exageram um bocado, não acha?"
O capitão balançou devagar a cabeça, resignado às mudanças que se operavam na sua mulher.
"É melhor que nada."
A sineta voltou a soar no andar de baixo e Beatriz saiu mais uma vez da cozinha para atender.
Eram as crianças mais velhas que vinham da escola. As aulas haviam sido suspensas; ninguém se sentia com disposição para trabalhar numa ocasião daquelas. O dia estava a ser de afluência generalizada às igrejas e um rio de gente convergia para o santuário do Sameiro. As notícias da rádio eram demasiado graves e um clima de receio havia-se instalado por toda a parte. Uns buscavam refúgio nas missas, outros nas conversas sobre a situação".
As duas irmãs espantaram-se com tanto alarido e apareceram na sala. Amélia ajudou os filhos a arrumar as coisas da escola enquanto Joana, inteirada do que se passava nas distantes capitais que tão pouco interesse habitualmente lhe despertavam, se sentou ao lado do juiz.
"Ai, valha-me Deus!", disse ela. "Já viu isto? Está tudo maluco."
"Pois está."
"Já convenci a Amélia e vamos ali ao Sameiro rezar vinte ave- marias para que tudo se recomponha."
O juiz esboçou um trejeito impaciente.
"Isto não vai lá com ave-marias..."
"Ah, não diga isso que Nosso Senhor ainda o castiga!"
"Receio que Nosso Senhor tenha mais com que se preocupar do que andar a ver o que andamos ou não a dizer."
"Se rezarmos muito, Ele há-de ouvir-nos e há-de ter piedade de nós. Ele e Nossa Senhora de Fátima, que é uma santa. O padre Abreu, que dá a missa das onze na Igreja da Misericórdia, disseme no outro dia que..."
"O menina...", interrompeu o juiz. Aquela conversa enervava-o. "Vá lá ao Sameiro rezar umas ave-marias e deixe-me aqui a falar com o senhor capitão, está bem?"
Joana fez sinal a Amélia, que tinha acabado de tratar dos filhos.
"Ai mana, vamos já embora!" Voltou as costas e afastou-se, mas ainda virou a cabeça para trás e deixou um derradeiro anúncio. "Desde que ouviu as notícias na telefonia que o senhor está que não se pode. Vou rezar a Deus, Nosso Senhor, para que lhe perdoe..."
O calor de Setembro, denso e asfixiante, atirara o capitão Branco para o seu escritório do piso térreo, um dos pontos mais frescos da casa. O oficial embrenhara-se nas suas contas habituais; dessa vez, a contabilidade estava centrada no cálculo de todo o vinho que teria de armazenar nas adegas após a venda aos clientes do costume. Como os dois filhos mais velhos haviam ido para a escola e Amélia saíra com Lourdes ao colo e com a irmã, Joana, o capitão dera um pião ao pequeno José e levara-o para brincar no chão do escritório.
Quando estudava o orçamento de um novo abastecedor de barris, alguém bateu à porta da rua.
Mário Branco foi ver e deu com o rosto gasto do comandante do seu antigo regimento.
"Nosso capitão, dá licença?"
"Meu comandante... por aqui?"
"é verdade. Será que podemos falar um minutinho?"
"Com certeza."
O capitão abriu a porta e deixou o coronel Silvério entrar. Levou-o para o escritório, ofereceu-lhe um cálice de vinho do Porto e sentou-o na cadeira mais dura que ali tinha. O Zezinho continuava a brincar com o pião e o antigo comandante do regimento de Penafiel lançou um olhar à criança, como se pedisse que ela saísse dali. O anfitrião ignorou a sugestão.