"Então como vai o nosso regimento?", perguntou Mário Branco, mais por cortesia do que curiosidade. "A mudança de ares para o Porto fez-lhe bem?"
O comandante abanou a mão.
"Assim-assim."
"Não me diga que veio cá a Penafiel porque estava com saudades..."
O coronel Silvério tirou um maço do bolso e acendeu um cigarro. Uma nuvem de fumo cinzento-azulado ergueu-se do seu rosto e colou-se-lhe ao cabelo.
"Não foram as saudades que me trouxeram cá", disse. "Foi o trabalho." Tirou um papel oficial do bolso interior, passou os olhos por ele e estendeu-o a Mário Branco com um sorriso. "Apresente-se amanhã de manhã ao major Viegas."
O capitão mirou o documento com ar interrogativo.
"O que é isto?"
"É uma ordem do general Gomes. Ele ouviu falar das suas capacidades de organizador e quer que o nosso capitão fique encarregado do racionamento em Penafiel."
"Racionamento?"
"Sim, homem." O comandante riu-se. "Então não sabe que o mundo está em guerra? Os bens vão faltar, meu caro! Toda a economia ficará centrada no esforço de guerra e a produção e o transporte de bens serão gravemente afectados. Até já há submarinos alemães a atacar navios no Atlântico, veja lá! O governo decidiu por isso instituir planos para organizar racionamentos por todo o país, caso tal venha a ser necessário. O nosso capitão terá de ser discreto com isto, não queremos que se instale o pânico entre a população, até porque pode nem vir a ser necessário tomar estas medidas, claro... Mas o seguro morreu de velho, como dizia o outro."
"Desculpe, meu coronel, não percebo." Apoiou a palma da mão sobre o peito, com ar perplexo.
"Porquê eu?"
"É que o governo entregou essa operação ao exército e o general Gomes pensou em si para organizar a coisa aqui em Penafiel."
"Mas, meu coronel, eu já não estou no exército."
Silvério levantou-se pesadamente, dando a conversa por terminada. Antes de se afastar, contudo, inclinou-se para a frente e, apoiando a palma das mãos na secretária, cravou os olhos no seu interlocutor e abanou a cabeça.
"Não estava, meu caro capitão. Não estava."Naquela tarde de Setembro de 1940, e como era hábito sempre que o sol brilhava ameno e o tempo se apresentava agradável, o casal Branco instalou a mesinha na varanda das traseiras e acomodou-se para o lanche com vista para o quintal.
Amélia lia com inusitado interesse O Comércio do Porto que o marido acabara de lhe trazer do clube dos oficiais quando pousou o jornal sobre a mesinha e pegou na chávena de chá.
"Ó Mário", interpelou ela com ar pensativo, "será que aquilo é mesmo assim tão catita?"
O capitão tentava acender um cachimbo. Aspirou com força e pousou os olhos na página do jornal que a mulher acabara de ler. O título da notícia que dominava essa página mencionava o sucesso que estava a ter o grande evento do ano, inaugurado com vistosa pompa três meses antes.
A Exposição do Mundo Português.
"O quê? A Exposição?"
"Sim." Amélia fez um gesto para a fotografia do jornal a ilustrar a notícia. "O Gonçalves, aquele sacristão do Sameiro, esteve na semana passada em Lisboa e veio de lá maravilhado."A primeira nuvem de fumo aromático ergueu-se com lentidão pelo ar.
"O pessoal no clube dos oficiais diz-me o mesmo."
"Mas, se é coisa assim tão monumental, achas que isso faz algum sentido nestes tempos difíceis?
No fim de contas há uma guerra a decorrer..."
"Sabes, isto foi planeado há dois anos. A verdade é que em 1938 o Toninho não tinha modo de prever que a guerra iria rebentar..."
"De qualquer modo! Já viste? Tanta gente a sofrer e nós a festejar a lusitanidade!..."
O capitão voltou a concentrar-se no cachimbo.
"É verdade, querida." Aspirou e libertou nova nuvem perfumada. "Mas o que havíamos nós de fazer? Deitar abaixo a construção? Pois se o dinheiro já está gasto e a obra concluída não achas que o melhor é mesmo seguir em frente? Além disso, a exposição tem a vantagem de aumentar o moral do povo, cimentar o orgulho nacional e a confiança no futuro. Em tempos tão deprimentes, estas coisas ajudam-nos a encarar a vida, não te parece?"
Amélia bebericou o chá e pousou a chávena, pensativa.
"Talvez tenhas razão", concluiu. Pegou no bule e começou a deitar mais chá na chávena, mas interrompeu a operação a meio, o bule suspenso no ar, como se algo tivesse acabado de lhe ocorrer.
"Olha lá, e se nós também lá fôssemos?"
"Lá onde?"
"A exposição, Mário. Vamos à exposição!"
A mais antiga memória completa de José Branco, aquela em que pela primeira vez reteve os mais ínfimos pormenores de tudo o que viu e sentiu, incluindo cheiros e cores, foi justamente a da emocionante viagem que fez com a família a Lisboa, corria o mês de Setembro de 1940 e ia ele completar quatro anos daí a algumas semanas.
Na zona de Belém, entre o Mosteiro dos Jerónimos e o estuário do Tejo, Salazar mandara arrasar barracões e casas velhas para erguer o grande certame, uma gigantesca montra da lusitanidade, por ocasião dos oitocentos anos da fundação de Portugal e dos trezentos anos da restauração da independência.
O evento abriu portas em Junho, mas o começo não foi auspicioso; além de vários pavilhões ainda não estarem prontos, o dia da inauguração ocorreu vinte e quatro horas depois da capitulação da França e da chegada das tropas alemãs à fronteira espanhola. O ambiente em Portugal tornou-se pesado e temeroso; aproximavam-se os ventos de guerra, eram sinais de uma longínqua tempestade que se adensava no horizonte, imensa e ameaçadora, carregando o céu de sombria preocupação.
A depressão foi, porém, rapidamente enfrentada; em breve a grandiosa exibição de lusitanidade começou a ser encarada como uma ilha pacata naquele mar de tormenta, um fogacho de tranquilidade na noite agitada, uma luz de esperança que se acendera na treva. Organizaram-se grupos, fizeram-se excursões, primeiro algumas centenas de pessoas, depois milhares, a certa altura já dezenas de milhares, centenas de milhares... Chegou ao primeiro milhão o número de portugueses que se juntaram, vestiram as melhores fatiotas, prepararam o farnel e atravessaram o país para apreciar tão espantoso acontecimento.
Os ecos da magnificência da obra percorreram Portugal da costa ao Interior. Não havia jornal, nem rádio, nem café, nem taberna, nem esquina, nem casa, não havia sítio onde, além das notícias da guerra, não se comentasse coisa tão magnífica. Os que chegavam de Lisboa vinham deslumbrados, gabando "obra própria de país do progresso", e os encómios eram tantos e tão entusiásticos que inevitavelmente acabaram por mobilizar o casal Branco.
Toda a família seguiu para o Porto na barulhenta camioneta alugada por Mário Branco à Alberto Pinto. A bordo iam, além do capitão, a mulher e os filhos, Joana e ainda Beatriz, a jovem criada encarregada de vigiar o pequeno José. O juiz Brandão ficara para trás, dizia ele que a grande cidade lhe "fazia espécie", mas outras pessoas da terra aproveitaram a iniciativa e contribuíram com uns tostões em troca de boleia até à capital para visitar a tão badalada exposição.
O percurso de Penafiel ao Porto levou quase três horas, feitas à beira-rio em curvas e contra-curvas, com o fumo acre da camioneta a entrar pelas janelas e a enjoar as senhoras, o cheiro a gasóleo queimado a misturar-se com a brisa fresca que soprava pela manhã ao longo da margem norte. Cruzaram o Douro pela Ponte D. Luís, já perto do meio-dia, e meteram pela Nacional 1 até Lisboa.