Mas a viagem era demorada e incómoda, tão maçadora que depois de Coimbra, já noite dentro, decidiram estacionar na berma da estrada e pernoitar na camioneta. As marmitas foram abertas e José refastelou-se com o repasto trazido de casa; comeu língua afiambrada com bolinhos de bacalhau e carne assada, tudo bem acompanhado por regueifas e um verde tinto ácido que até as crianças degustaram.
Chegaram a Lisboa ao princípio da tarde do dia seguinte e instalaram-se na casa do Pires, um camarada de armas do capitão desmobilizado. Pires vivia em Campolide e certa vez zangara-se com Branco por causa de um tostão. A história tornara-se já lenda de família. Parece que o metódico capitão se recusara a emprestar um tostão ao amigo, alegando que ambos ganhavam o mesmo e que, se o soldo chegava para um, também teria de chegar para o outro; a Pires bastaria saber administrar o que recebia. O incidente ocasionara uma daquelas zangas que acabam numa amizade inquebrável. A reconciliação aproximou-os tanto que o velho companheiro de armas abriu as portas da casa de Campolide à multidão que lhe desaguou da fumegante camioneta da Alberto Pinto, como bárbaros à conquista da capital.
Os primeiros dias na cidade foram de grande espanto. Depois de se instalar em casa do Pires, a família Branco foi levada pelo anfitrião num passeio a pé até à Baixa, com intenção de conhecer o grande Rossio; no fim de contas, argumentou Pires, era o centro nevrálgico de Lisboa, o ponto onde a cidade se encontrava para dois dedos de conversa, o sítio onde tudo mexia e a vida palpitava.
"Ó Branco, você vai ver uma coisa incrível", avisou o amigo, caminhavam todos pela Avenida da Liberdade em direcção aos Restauradores. "Prepare-se, que é mesmo de pasmar!"
"O quê?"
"Tenha calma. Já lhe mostro." Olhou para trás e avaliou o resto do grupo. "Não sei é se é espectáculo aconselhável a senhoras e crianças..."
"Está à luz do dia?"
"Claro."
"É permitido pelas autoridades?"
"É pois."
"Então mostre lá isso, homem. Não há-de ser nada de mais!"
O dia nascera quente, tornara-se abafado até. Sentiam o suor crescer por baixo das axilas e correr em pingos pelas costas, mas não podiam fazer nada; camisas, casacos, saias compridas, lenços e chapéus eram requisitos imprescindíveis para as pessoas recatadas, respeitadoras da moral e da ordem, mesmo quando a canícula apertava.
Chegaram aos Restauradores e meteram para o Rossio. Ao entrarem na grande praça deram com uma novidade absoluta: havia mesas e cadeiras espalhadas pelos passeios e os clientes a exporem-se ao olhar dos transeuntes.
"O que é isto, Pires?"
O anfitrião sorriu, quase ufano por mostrar aquelas novidades ao amigo chegado da província.
"São esplanades."
"Espia... quê?"
"Es-pla-na-des" , repetiu quase a soletrar, afinando o sotaque francês. "Parece que Paris está repleta delas."
"Mas... e o recato? As pessoas exibem-se assim na rua, sem mais nem menos?"
"É o progresso, meu caro! É o progresso!"
Mário Branco e a família ficaram especados a observar a cena inusitada. O mais curioso é que a inovação parecia estar a ser um êxito; bastava ver como essas esplanades se encontravam apinhadas de clientes e observar o formigar irrequieto em torno das mesas soalheiras e dos balcões protegidos pela sombra fresca.
"Olhem ali para a Suissa", indicou Pires com um'sorriso malicioso, erguendo as sobrancelhas.
"Ora vejam bem os clientes!"
O capitão analisou melhor os homens que se sentavam à mesa da esplanade da Pastelaria Suissa, com cafés a fumegar e copos de whisky nas mãos, defendidos do sol pelas sombrinhas coloridas; tinham a pele muito pálida, os cabelos aloirados e os olhos claros, e vestiam com elegância, muito limpos e janotas; pareciam actores de uma fita americana.
"São estrangeiros?"
"Claro."
"Ingleses?"
Pires fez um gesto vago com a mão.
"Ingleses, americanos, alemães, italianos, franceses, holandeses, checoslovacos, polacos, eu sei lá! Vêm de toda a parte!"
O capitão esboçou um ar surpreendido perante o desfilar de nacionalidades.
"Mas o que está toda esta gente cá a fazer?"
"Ó homem, não sabe que há uma guerra a lavrar por essa Europa fora?" Fez um gesto teatral na direcção da esplanade. "A maior parte deste pessoal são refugiados. São milhares e milhares, o que pensa você? Vêm a fugir dos tanques alemães e querem ir para a América; vieram apanhar um barco ou o clipper. Estes são os mais endinheirados." Baixou a voz. "Mas há também uns que chegaram aqui com uma mão à frente e outra atrás. Muitos são judeus."
"Há judeus?"
"Ui, tantos! Parece que os Alemães não gostam deles, coitados. Não se vêem muito pela rua.
Ouvi dizer que se concentram ali na Cozinha Económica Israelita e estão todos a tentar seguir para a América, dê por onde der, nem que seja a nado."
O capitão contemplou pensativamente aquela gente e por momentos teve a inusitada sensação de ser testemunha de um acontecimento de relevância transcendente.
"Quem diria! Desgraçados, vêm a fugir da guerra!..."
"Bom, a maior parte são refugiados, mas nem todos! Há também por aí muito diplomata, e espiões, oh, parecem moscas! Dizem que o Hotel Aviz está cheio de espionagem, que aquilo é um verdadeiro covil de serpentes, todos a ver se sacam informações ou tramam o parceiro!"
"Como nas fitas americanas?"
"Isso." Pires soltou uma gargalhada. "Só cá falta o Clark Gable!"
Os estrangeiros mostravam um ar aparentemente descontraído, escondendo decerto o tumulto que lhes fervilhava na alma. Uns haviam-se embrenhado num burburinho de conversas, ora a comentar a política e a grave situação internacional, ora a queixar-se das saudades da família ou a lamentar as notícias que lhes chegavam de casa; outros permaneciam calados, metidos consigo, admirando com calma impaciente o rolar morno da lenta tarde lisboeta, talvez a pensar na terra que haviam deixado, quem sabe se a sonhar já com aquela para onde partiam.
"Ó Pires, já reparou que muitos não usam chapéu?"
O amigo riu-se.
"Caramba, Branco! Estava a ver que você não reparava nisso..."
"Mas isto agora é assim? Não se usa chapéu?"
"Parece que é moda lá fora andar de cabeça descoberta, o que quer que lhe diga?" Apontou para um homem sentado ao fundo, a ler um jornal francês. "Olhe para aquele. Olhe só."
O capitão localizou o homem e abriu a boca, surpreendido.
"Mas o tipo é careca!"
"Pois é."
"E não tem chapéu!" Fitou o amigo com ar incrédulo. "Já viu?" Voltou a mirar o homem, como se quisesse garantir que os seus olhos não o tinham enganado. "Não tem chapéu! O homem está a exibir a careca!"
"O Branco! E isto ainda não é nada..."
Ouviu-se um gritinho feminino lá atrás. Os dois homens voltaram-se e viram Joana a aproximar-se, afogueada, quase num tropel; vinha com ar de quem tinha visto o Demónio.
"O que é?", perguntou Amélia à irmã, alarmada por vê-la assim aflita. "O que foi?"
"Ai, valha-me Deus, nossa Senhora, Virgem santíssima!"
"O que foi, rapariga?"
"Ai, não me digas nada, mana, não me digas nada que até me falta o ar!" Pôs a mão no peito, como se assim conseguisse conter a violência dos pulos que o coração aí dava. "Ai Jesus!" Respirou fundo e, fechando os olhos, recuperou um pouco da compostura. "Isto é um escândalo!", exclamou por fim. "Um escândalo!"
"O quê? O que é um escândalo?"