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Joana fez um gesto com a mão na direcção do outro lado do Rossio. Os rostos voltaram-se para lá e todos perceberam que havia ali uma outra esplanade, esta diante do Café Nicola. Olharam todos excepto a própria Joana, que apontava sem voltar o rosto, como se o que tivesse visto fosse demasiado horrível, demasiado obsceno para se atrever a observar de novo.

"Aquilo! Aquilo!"

Os olhos colaram-se à esplanade do Nicola, perscrutando-a à procura de mais alguma anormalidade.

"O quê?"

"Aquelas... mulheres", soltou Joana, quase com nojo, ainda sem olhar. "Vocês não vêem?"

Acompanhando o olhar do grupo, o capitão lobrigou, de facto, duas mulheres sentadas à mesa.

Observou-as melhor e a boca abriu-se-lhe; inclinou a cabeça para a frente e ficou de olhos esbugalhados, vendo e não acreditando.

"Co's diabos!", foi tudo o que conseguiu balbuciar durante momentos.

Amélia pestanejou, atordoada quando enxergou finalmente o que escandalizara a irmã.

"Valha-me Deus!", exclamou com estupefacção. "Vocês já viram aquilo?"

O capitão, ainda embasbacado, abanou afirmativamente a cabeça.

"Estou a ver, estou a ver."

"É incrível, não é?"

Branco voltou-se para Pires e deu com o amigo a mirá-lo com um sorriso malicioso, como se o maior espectáculo não fossem aquelas poucas-vergonhas, mas o choque de quem as via.

"Ó Pires, quem são estas mulheres?"

"Refugiadas."

"E são todas assim?"

"Todas."

"Andam sem chapéu?"

"Andam. Mostram a cabeça todinha. Até têm o cabelo solto."

"Caramba! E sentam-se sozinhas? Assim? Sem ao menos estarem acompanhadas por um cavalheiro?"

"Sim."

"Minha Nossa Senhora!" O capitão observou uma delas a levar um objecto fumegante à boca e quase ficou sem palavras. "Ora esta!", acabou por exclamar. "Elas fumam? As mulheres agora fumam?"

"Fumam, pois."

"Mas assim parecem homens..."

Pires encolheu os ombros.

"Isto faz espécie a toda a gente, mas elas andam assim, o que quer que lhe faça?"

O capitão abanou a cabeça, uma expressão desaprovadora no rosto.

"Está tudo perdido!"

"A princípio custa mais, é verdade", assentiu o amigo. "Mas com o tempo vamo-nos habituando..."

Joana atreveu-se a espreitar outra vez mas depressa tapou a cara, ainda mais horrorizada.

"Ai as pernas, Jesus!"

Branco procurou as pernas das estrangeiras e arregalou de novo os olhos, absolutamente incrédulo.

"Mas... mas elas não usam meias!"

"Pois não", confirmou Pires com o mesmo sorriso a bailar-lhe nos lábios. "A malta toda já reparou." Apontou para um grupo de homens portugueses que se aglomeravam em torno de um dos bancos do Rossio, todos eles de olhos sôfregos voltados para a esplanade do Nicola. "Olhe, está a ver aqueles? Passam o dia todo ali, a apreciar as pernas das estrangeiras. Então quando elas cruzam o pernil, ui!, fazem um alarido que só visto. Até batem palmas!"

"E imoral!", vociferou Joana, abanando a cabeça com incontida indignação. "Isto é imoral! Uma indecência!" Benzeu-se. "Se o padre Abreu visse isto, se ele visse a pouca-vergonha que para aqui vai, ele... ele... olhem, nem sei o que diria! Mas havia de dizer alguma coisa!" Arregalou os olhos.

"Muitas coisas! E das boas!"

Pires esfregou as mãos.

"Bem, é para que vejam como isto está." Fez um gesto largo que abarcou toda a esplanade. "E se aqui é assim, então nem queiram saber o que vai nas praias..."

"Nas praias?", quis saber Branco.

"Sim, nas praias. Aquilo no Estoril é uma verdadeira escandaleira. Você sabe lá! Vêem-se homens a andar de tronco nu na areia!"

"O quê?"

"Sim, sim. De tronco nu, digo-lhe eu!"

O capitão abanou de novo a cabeça; cada novidade lhe parecia ainda mais chocante do que a anterior.

"Onde isto vai parar..."

"E as mulheres?" Pires agitou a mão com violência. "Olé, as mulheres!"

"O que têm elas?"

"O que têm elas?", riu-se de novo o amigo. "Olhe, as estrangeiras andam com maillots que nem me atrevo a descrever. Para que tenha uma ideia, basta dizer que essas moças exibem as pernas até quase ao ventre." Mostrou com a mão todas as partes das pernas que ficavam a descoberto. "Vêem-se-lhes as coxas todas!"

"O quê? Isso é permitido?"

"Sei lá!", riu-se Pires. "Eu pensava que não, mas eles e elas andam assim..."

"Uma pouca-vergonha", insistiu Joana, sempre a abanar a cabeça com ar reprovador.

"Isto é realmente um bocado de mais", comentou Amélia, incapaz de tirar os olhos das duas mulheres sentadas na esplanada a fumar. "Mas se calhar é o progresso, o futuro..."

Joana mirou-a com expressão indignada.

"Ó Amélia! Como podes dizer isso? Valha-me Deus!"

Lá atrás, José pediu colo a Beatriz. A criada ergueu-o e o pequeno contemplou a esplanada, tentando perceber a causa de tanto burburinho entre os pais e de tantas risadinhas e comentários dos irmãos mais velhos. Mas nada descobriu de relevante, apenas gente sentada às mesas, por baixo de vastas sombrinhas, a beber um café, a trincar um pastel ou a saborear um cálice de whisky num dia de sol prazenteiro.Até o próprio capitão Branco, que conhecia bem Lisboa dos seus tempos da Escola de Guerra, se mostrou surpreendido com as mudanças que descobriu após palmilhar as ruas nos primeiros grandes passeios pela cidade.

Por toda a parte via construções e projectos a serem lançados; construíam-se pontes, estradas, viadutos, escolas, tribunais, hospitais, bairros sociais e cadeias. Pires começou por levá-los a ver a grande colina de Monsanto, obra que pelos vistos o enchia de orgulho. O espaço para além do vale, quase careca, fora coberto de árvores minúsculas, plantadas pouco tempo antes por ordens do governo.

"Vai nascer aqui uma grande floresta", anunciou o anfitrião, os olhos sonhadores presos à colina.

Mas a atenção de Mário Branco desviara-se para a imagem mais prosaica dos trabalhos que decorriam mesmo ali ao lado.

"E aquilo o que é? Uma ponte para a floresta?"

"Um viaduto", esclareceu Pires. "Vai ligar a cidade a Monsanto. O plano é abrir uma auto-estrada por aí fora, igual àquelas que o senhor Hitler mandou construir lá na Alemanha."O capitão assobiou, impressionado.

"Uma auto-estrada?", exclamou com admiração. "Chegou o progresso, não há dúvida!"

"E sabe o que o viajante vai encontrar no final desta auto-estrada?", perguntou Pires, sempre empolgado. "Um grandioso stadium de estilo helénico! Embora daqui não se veja, esses trabalhos também já começaram. Fui lá espreitar há duas semanas e aquilo vai de vento em popa! Olaré, uma maravilha! O nosso stadium vai fazer o Stadium Olímpico de Berlim parecer uma reles arena de touros!"

A capital dava ares de um imenso estaleiro, o que deveras impressionou os visitantes. Depois de Monsanto fizeram uma grande volta por Lisboa e por toda a parte avistaram construção civil a laborar. O Instituto Superior Técnico, quase pronto, era uma obra monumental, por todos gabada, tal como a magnífica fonte que decorava a Alameda Afonso Henriques. Na zona da Portela era construído, imagine-se, um aeroporto, coisa única, própria de país avançado, prova inequívoca de que Portugal trilhava com abnegação a senda do progresso. O Parque Eduardo VII começava a ser ajardinado e Pires insistia que ia ficar "uma beleza". O cicerone do grupo revelou-lhes que havia até planos para erguer um enorme hospital nuns baldios para lá da Praça de Espanha.

"No projecto chamam-lhe Santa Maria", esclareceu. "Mas pode ser que ainda lhe mudem o nome, nunca se sabe."