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Não posso evitar, pensou Cortabem. Parece que causo um efeito espantoso nas mulheres.

— É homem? — perguntou Keli, lá de dentro.

Os olhos da criada se embaciaram, e ela inclinou a cabeça, como se não tivesse certeza do que tinha ouvido.

— Sou eu, Cortabem — avisou Cortabem.

— Ah, então não tem problema. Pode entrar.

Cortabem passou pela menina e tentou ignorar o riso abafado que ela soltou ao se retirar do quarto. Todo mundo sabia que não havia necessidade de dama de companhia quando uma mulher se encontrava com um mago. Fora exatamente a inflexão da princesa — “Ah, então não tem problema” — que fez ele se contorcer por dentro.

Keli estava sentada à penteadeira, escovando o cabelo. Pouquíssimos homens no mundo chegam a descobrir o que uma princesa usa debaixo do vestido e, com extrema relutância mas notável autocontrole, Cortabem juntou-se a eles. Apenas a dança frenética do pomo-de-Adão o traiu. Não havia a menor dúvida: por dias ele não estaria apto a realizar magia.

Ela se virou, e ele sentiu o cheiro de talco. Por semanas, droga, por semanas.

— Cortabem, parece estar com calor. Algum problema?

— Nãããh.

— O quê?

Ele se sacudiu. Concentre-se na escova de cabelo, homem de Deus, na escova de cabelo.

— Foram as experimentações mágicas, senhorita. Só queimaduras superficiais.

— A coisa ainda está se movendo?

— Está.

Keli se voltou para o espelho. O rosto estava sério.

— Temos tempo?

Essa era a parte que ele vinha temendo. Fizera tudo o que podia. O astrólogo real fora mantido sóbrio durante tempo suficiente para insistir que o dia seguinte era a única data possível para a realização da cerimônia, então Cortabem havia providenciado para que começasse um segundo após a meia-noite. Tinha impiedosamente cortado a apresentação da banda real. Havia agendado a invocação do sumo sacerdote aos deuses e então eliminado algumas partes. (Haveria confusão quando os deuses descobrissem.) E o ritual de unção com óleos sagrados se resumiria a um breve salpico atrás das orelhas. Ainda não tinham inventado o skate no Disco — se tivessem, a passagem de Keli pela nave da igreja seria inconstitucionalmente rápida. E mesmo assim não bastava. Ele tomou coragem.

— Talvez não — arriscou. — Pode ser questão de minutos. Ele notou que estava sendo encarado através do espelho.

— Quantos?

— Hum. Poucos.

— Você está tentando dizer que deve chegar na hora da cerimônia?

— Hã. Mais para, hum, antes — lamentou Cortabem.

Não havia nenhum som além do tamborilo dos dedos de Keli na beira da mesa. Cortabem se perguntou se ela iria entrar em pânico ou quebrar o espelho. Em vez disso, a princesa perguntou:

— Como sabe?

Ele imaginou se conseguiria se safar com uma resposta do tipo “Sou mago, sabemos dessas coisas”, mas decidiu que não. A última vez que dissera isso, ela o havia ameaçado de degola.

— Perguntei a um dos guardas sobre o bar de que Mort tinha falado — contou ele. — Então calculei a distância aproximada que a abóbada havia percorrido. Mort disse que ela estava se movendo a passos lentos, mas acho que as passadas dele...

— Simples assim? Não usou magia?

— Só o bom senso. A longo prazo, é muito mais confiável. Ela estendeu o braço e afagou a mão dele.

— Coitado do meu velho Cortabem.

— Só tenho 20 anos, senhorita.

Ela se levantou e avançou para o quarto de vestir. Uma coisa que se aprende quando se é princesa é ser sempre mais velha do que todo mundo em posição inferior.

— É, imagino que devem existir magos jovens — disse, por sobre o ombro. — Só que as pessoas sempre os imaginam velhos. Por que será?

— Os contratempos da profissão — lamuriou Cortabem, rolando os olhos para cima.

Ele ouviu o ruge-ruge da seda.

— O que o fez decidir virar mago?

A voz saiu abafada, como se ela estivesse com alguma coisa sobre a cabeça.

— É trabalho interno e não precisa levantar peso — respondeu Cortabem. — Acho que eu também queria aprender como funciona o mundo.

— E aprendeu?

— Não.

Cortabem não era muito bom em conversa fiada, do contrário jamais teria deixado a mente vaguear o bastante para se permitir perguntar:

— O que a fez decidir virar princesa?

Depois de um silêncio meditativo, ela respondeu:

— Decidiram por mim.

— Desculpe, eu...

— Ser rei é meio que uma tradição familiar. Imagino que aconteça a mesma coisa com magia. Com certeza, seu pai era mago...

Cortabem rangeu os dentes.

— Hum. Não — respondeu. — Não de todo. Aliás, não de nada.

Ele sabia o que viria em seguida, e foi o que veio, certo como o pôr-do-sol, numa voz que sugeria graça e fascínio.

— Ah? É verdade que mago não pode...

— Bem, se isso é tudo, vou andando — gritou Cortabem. — Caso precise de mim, basta seguir as explosões. Eu... gnnnh!

Keli havia saído do quarto de vestir.

Ora, roupa feminina não era um assunto que ocupasse Cortabem — na verdade, quando ele pensava em mulher, as imagens mentais raramente incluíam qualquer vestimenta —, mas a visão à frente de fato lhe tirava o fôlego. Quem quer que houvesse desenhado o vestido não sabia quando parar. Tinham botado renda sobre a seda e enfeitado com peles de animal, enfiado pérolas onde quer que parecesse vazio, enchido e engomado as mangas e então acrescentado filigranas de prata e aí começado tudo outra vez com a seda.

Era sem dúvida impressionante o que se podia fazer com vários gramas de metal pesado, alguns moluscos irritados, uns poucos roedores mortos e muito fio saído do traseiro de insetos. O vestido era antes ocupado do que usado. Se os babados à volta não estavam sustentados por rodinhas, então Keli era muito mais forte do que ele havia imaginado.

— O que acha? — perguntou ela, virando-se devagar. — Foi usado pela minha mãe, minha avó e a mãe dela.

— O que, ao mesmo tempo? — indagou Cortabem, preparado para acreditar que sim.

“Como ela conseguiu entrar ali?”, perguntava-se ele. Deve ter uma porta atrás...

— É um legado familiar. Tem diamantes de verdade no corpete.

— Que parte é o corpete?

— Esta aqui.

Cortabem estremeceu.

— É espetacular — comentou, quando pôde confiar em si mesmo para falar. — Mas a senhorita não acha que talvez seja um pouco senhoril demais?

— É de rainha.

— Eu sei, mas talvez não a deixe andar muito depressa.

— Não tenho a menor intenção de sair correndo. Deve haver dignidade.

Mais uma vez a disposição do queixo remeteu ao vitorioso antepassado, que preferia andar depressa o tempo todo e só conhecia a dignidade existente em ponta de lança afiada.

Cortabem abriu as mãos.

— Tudo bem — disse. — Ótimo. A gente faz o que pode. Só espero que Mort tenha tido alguma idéia.

— É difícil confiar em fantasma — rebateu Keli. — Ele atravessa paredes!

— Estive pensando sobre isso — considerou Cortabem. — É estranho, não é? Ele só atravessa as coisas quando não sabe que está atravessando. Acho que é doença profissional.

— O quê?

— Ontem à noite, tive quase certeza. Ele está ficando real.

— Todos nós somos reais! Pelo menos você é, e acho que eu também.

— Mas ele está ficando mais real. Extremamente real. Quase tão real quanto Morte, e nada é mais real. Nada mesmo.

— Tem certeza? — perguntou Albert, desconfiado.

— Claro — respondeu Ysabell. — Se preferir, decifre você mesmo. Albert voltou os olhos para o livro, tendo no rosto a máscara da incerteza.