— É, ninguém morre no reino do próprio Morte. Mas você está satisfeito? — quis saber Mort.
— Tenho mais de 2 mil anos. Vivi mais do que qualquer outra pessoa desse mundo.
Mort sacudiu a cabeça.
— Não viveu, não — protestou. — Só estendeu mais as coisas. Ninguém vive aqui. O tempo neste lugar é falso. Nada muda. Eu preferiria morrer e ver o que acontece depois a passar a eternidade aqui.
Pensativo, Albert botou a mão na testa.
— É, talvez — admitiu. — Mas eu sou mago. E era bom no negócio. Ergueram uma estátua para mim, sabia? Mas ninguém é mago por muito tempo sem fazer alguns inimigos... inimigos que vão esperar do Outro Lado.
Ele fungou e prosseguiu:
— Nem todos têm duas pernas. Alguns não têm perna nenhuma. Nem rosto. A morte não me assusta. É o que vem depois.
— Então me ajude.
— De que me serviria?
— Um dia, pode precisar de amigos no Outro Lado — respondeu Mort. Então pensou por alguns segundos e acrescentou: — Se eu fosse você, não me incomodaria em dar uma polida de última hora na alma. Talvez alguns desses inimigos não gostem do sabor.
Albert estremeceu e fechou os olhos.
— Você não sabe sobre o quê que coisa está falando — disse, com mais sentimento do que gramática. — Do contrário, não diria isso. O que quer de mim?
Mort contou.
Albert soltou uma gargalhada.
— Só isso? Só mudar a Realidade? Não dá! Já não existe magia forte o bastante. Há algum tempo, os Grandes Feitiços podiam. Mas nada além deles. E é isso, faça o que quiser e seja feliz.
Arfante, Ysabell retornou, trazendo nas mãos o último livro da vida de Albert. Ele fungou outra vez. A gotinha na ponta de seu nariz deixava Mortimer fascinado. Estava sempre a ponto de cair, mas nunca tinha coragem. Exatamente como o dono, pensou.
— Não podem fazer nada comigo através do livro — aventurou-se o mago.
— Nem pretendo. Mas acho que não se chega a ser um mago poderoso dizendo a verdade o tempo todo. Ysabell, leia o que está sendo escrito.
— “Albert encarou-o, hesitante” — leu Ysabell.
— Você não pode acreditar em tudo que está escrito aí...
— “... gritou ele, sabendo que Mort com certeza podia” — continuou Ysabell.
— Pare!
— “... berrou, tentando esconder no fundo da mente a informação de que mesmo se a Realidade não podia ser detida, era possível desacelerá-la um pouco.”.
— Como?
— “... entoou Mort, na inflexão sepulcral de Morte” — recomeçou Ysabell, obedientemente.
— Tudo bem, tudo bem, não precisa ler minha parte — irritou-se Mort.
— Perdoe-me, “senhor”, por estar viva.
— Ninguém é perdoado por estar vivo!
— Não fale comigo desse jeito. Você não me assusta — disse ela. Então leu no livro a frase que a chamava de mentirosa.
— Mago, diga como — exigiu Mort.
— A magia é tudo o que me resta! — lamentou Albert.
— Você não precisa mais dela, seu miserável.
— Não pense que me assusta, garoto...
— Olhe na minha cara e diga isso.
Altivo, Mort estalou os dedos. Ysabell baixou novamente a cabeça sobre o livro.
— “Albert mirou o brilho azul daqueles olhos e o resto da ousadia escoou” — leu ela. — “Porque viu não apenas Morte mas Morte com todos os temperos humanos da vingança, da crueldade e da aversão. Com uma certeza terrível, soube que aquela era a última chance e que Mort o mandaria de volta ao Tempo, então o perseguiria e o entregaria pessoalmente ao escuro Calabouço das Dimensões, onde criaturas do horror fariam pontinho pontinho pontinho pontinho pontinho” — terminou ela. — Fica metade de uma página só no pontinho pontinho.
— Porque o livro não se atreve nem mesmo a mencionar o que acontece — murmurou Albert.
Tentou fechar os olhos mas as imagens na escuridão de sua mente se mostraram tão vividas, que ele os abriu novamente. Até Mortimer era melhor do que aquilo.
— Tudo bem — disse, afinal. — Existe um feitiço. Ele retarda o tempo num lugar específico. Vou escrever, mas você vai ter de achar um mago para dizê-lo.
— Sem problema.
Albert passou a língua pelos lábios ressequidos.
— Mas tem seu preço — advertiu. — Você precisa fazer o Serviço antes.
— Ysabell? — chamou Mort. Ela olhou a página à frente.
— É verdade — disse. — Se você não fizer o Serviço, tudo desanda e ele volta ao Tempo de qualquer maneira.
Os três se viraram para o grande relógio que dominava o vestíbulo. O pêndulo oscilava lentamente no ar, cortando o tempo em pedacinhos.
Mort soltou um gemido.
— Não tem tempo! — exclamou. — Não vou conseguir fazer os dois a tempo! Não vou conseguir fazer os dois a tempo!
— O patrão teria achado tempo — observou Albert.
Mortimer pegou a espada no vão da porta e agitou-a furiosamente, mas sem muita eficácia, na direção de Albert, que se afastou.
— Então escreva o feitiço — gritou. — E rápido!
Deu meia-volta e dirigiu-se ao gabinete de Morte. Num canto, havia um grande disco do mundo inteiro, com elefantes de prata fincados na carapaça de uma Grande A'Tuin feita de bronze, com mais de um metro de comprimento. Os rios eram representados por veios de jade; os desertos, por diamante em pó; e as cidades mais notáveis se distinguiam por pedras preciosas. Ankh-Morpork, por exemplo, era um carbúnculo.
Ele depositou as duas ampulhetas sobre a localização aproximada de seus donos e sentou na cadeira de Morte, olhando para elas, desejando que se encontrassem mais perto. A cadeira rangia de leve ao girar de um lado para o outro.
Depois de um tempo, Ysabell entrou no gabinete, em passos macios.
— Albert escreveu o feitiço — tratou de informar. — Conferi no livro. Não é nenhum truque. Agora se trancou no quarto e...
— Olhe pra isso! Quer por favor olhar pra isso!
— Mort, acho que você precisa se acalmar um pouco.
— Como posso me acalmar com, olhe, esse aqui quase no Grande Nef e esse outro bem em Bes Pelargic? E depois tenho de voltar a Sto Lat. Contando idas e voltas, é uma viagem de 15 mil quilômetros. Impossível!
— Tenho certeza de que você vai achar um jeito. E eu vou ajudar.
Pela primeira vez, ele a olhou e viu que estava usando o casaco de sair, aquele bastante impróprio, com a imensa gola de pele.
— Você? O que poderia fazer?
— Pituco carrega dois fácil — argumentou ela, com doçura. Então agitou vagamente um saco de papel. — Já preparei lanche para a gente. Eu posso... abrir as portas e tal.
Mort riu, melancólico.
— Não vai ser necessário.
— Pare de falar assim.
— Não posso levar passageiros. Você vai me atrasar.
Ysabell suspirou.
— Olhe aqui, vamos fazer o seguinte. Imagine que tivemos uma briga e eu ganhei. Entende? Poupa tempo. Aliás, você vai achar o Pituco um tanto relutante se eu não for junto. Ano após ano, sempre dei muito torrão de açúcar para ele. Agora... vamos?
Albert sentou na cama estreita, encarando o teto. Ouviu o ruído de patas, abruptamente interrompido no momento em que Pituco levantou vôo, e murmurou alguma coisa.
Vinte minutos se passaram. Expressões atravessavam o rosto do velho mago feito sombras de nuvens na encosta de uma montanha. De vez em quando, ele sussurrava algo para si mesmo, como “Eu avisei”, “Não deveria ter ajudado” ou “O patrão precisa saber disso”.
Por fim, pareceu chegar a um acordo consigo mesmo, ajoelhou-s com cuidado no chão e puxou um antigo baú de baixo da cama. Abriu-o com dificuldade e desdobrou um manto cinza empoeirado, espalhando naftalina e lantejoulas foscas pelo chão. Vestiu-o, sacudiu o grosso da poeira e outra vez engatinhou para debaixo da cama. Ouviu-se um monte de esconjuros e um tinido de porcelana, então Albert finalmente se levantou trazendo um bastão maior do que ele próprio.