A vara era mais grossa do que qualquer bastão normal, principalmente por causa dos entalhes que a cobriam de alto a baixo. Os cortes eram bastante indefinidos, mas davam impressão de que, se olhássemos melhor, acabaríamos nos arrependendo.
Albert bateu a poeira da roupa outra vez e examinou a si mesmo no espelho do lavatório.
Então disse: Chapéu. Falta o chapéu. Mago precisa de chapéu. Droga.
Saiu do quarto e voltou depois de quinze diligentes minutos, que incluíram um buraco circular no tapete do quarto de Mortimer, o papel prateado tirado de trás do espelho do quarto de Ysabell, linha e agulha da caixa que ficava embaixo da pia da cozinha e algumas lantejoulas soltas catadas no fundo do baú. O resultado final não era tão bom quanto ele gostaria e tendia a escorregar sobre um dos olhos, mas era preto, exibia luas e estrelas e revelava que sem dúvida o dono era mago, embora possivelmente um mago em desespero.
Pela primeira vez em 2 mil anos, ele se sentiu vestido da maneira adequada. Era uma sensação desconcertante que o fez refletir durante alguns segundos, antes de chutar o tapete em frangalhos para debaixo da cama e usar o bastão para traçar um círculo no chão.
À medida que a ponta da vara passava, deixava uma linha da reluzente octarina, a oitava cor do espectro, a cor da magia, o pigmento da imaginação.
Ele marcou oito pontos na circunferência e juntou-os a fim de formar um octograma. Uma pulsação baixa começou a tomar conta do quarto.
Alberto Malich entrou no centro e ergueu a vara sobre a cabeça. Sentiu-a despertar ao aperto de sua mão, sentiu o comichão do poder adormecido se estender devagar e deliberadamente, como um tigre acordando. Aquilo acionou antigas lembranças de força e magia que zumbiram no sótão cheio de teias de aranha de sua mente. Pela primeira vez em séculos, ele se sentiu vivo.
Lambeu os lábios. A pulsação havia sucumbido, deixando um tipo estranho, expectante de silêncio.
Malich levantou a cabeça e gritou uma única sílaba.
Um raio verde-azulado se desprendeu de ambas as pontas da vara. Chamas octarinas jorraram dos oito pontos do octograma e envolveram o mago. Nada disso era realmente necessário para realizar o feitiço, mas os magos acham as aparências muito importantes...
As “desaparências” também. Ele sumiu.
Ventos estratosféricos agitavam a capa de Mort.
— Aonde vamos primeiro? — perguntou Ysabell, no ouvido dele.
— Bes Pelargic! — gritou Mort, com a rajada a carregar as palavras para longe.
— Onde fica?
— No Império Agateano! Continente Contrapeso!
Ele apontou para baixo.
Sabendo dos quilômetros que tinham pela frente, no momento ele não estava forçando Pituco, e o grande cavalo branco corria num galope tranqüilo sobre o oceano. Ysabell olhou as estrondosas ondas verdes encimadas pela espuma branca e se agarrou a Mortimer.
Mortimer espiou as nuvens que assinalavam o continente distante e resistiu ao impulso de apressar Pituco com a lâmina da espada. Jamais picara o cavalo e não estava nem um pouco certo do que aconteceria se o fizesse. Tudo que podia fazer era esperar.
Uma pequena mão surgiu debaixo do seu braço, segurando um sanduíche.
— Tem de presunto ou queijo com chutney — avisou ela. — É melhor você comer, não tem nada melhor a fazer.
Mortimer olhou o triângulo empapado e tentou lembrar a última vez em que comera. Alguma hora para além do alcance do relógio — seria preciso um calendário para determinar. Pegou o sanduíche.
— Obrigado — disse, com o máximo de educação que conseguiu exprimir.
O minúsculo Sol avançava em direção ao horizonte, arrastando a vagarosa luz consigo. As nuvens adiante aumentaram e ficaram tingidas de rosa e laranja. Depois de um tempo, ele conseguiu avistar a massa escurecida de terra abaixo, com as ocasionais luzes de alguma cidade.
Meia hora depois, teve certeza de estar vendo construções isoladas. A arquitetura agateana pendia para pirâmides baixas.
Pituco desceu até os cascos se encontrarem a poucos metros do mar. Mortimer examinou a ampulheta outra vez e, com suavidade, puxou as rédeas para conduzir o cavalo em direção a um porto, mais no sentido da Borda.
Havia alguns navios ancorados, a maioria dos quais mercantes costeiros de uma única vela. O Império Agateano não incentivava os cidadãos a irem para longe, com medo de que vissem algo que pudesse perturbá-los. Pela mesma razão, construíra um muro em torno de todo o país, vigiado pela Guarda Divina, cujo trabalho consistia em pisar nos dedos dos habitantes que queriam dar uma escapulida de cinco minutos para tomar ar fresco.
Isso não acontecia com freqüência, porque a maioria dos cidadãos do imperador Solar estava satisfeita em viver do lado de dentro do Muro. É fato que todo mundo se encontra de um lado ou de outro de algum muro, então o melhor é esquecer o assunto ou fortalecer os dedos.
— Quem governa esse lugar? — perguntou Ysabell, ao passarem pelo porto.
— Tem um garoto imperador — respondeu Mort. — Mas acho que o manda-chuva mesmo é o grande vizir.
— Nunca confie num vizir — sugeriu Ysabell.
De fato, o imperador Solar não confiava. O vizir, cujo nome era Nove Espelhos Giratórios, tinha idéias muito claras a respeito de quem deveria reger o país, isto é, ele próprio, e agora o garoto estava ficando grande o bastante para fazer perguntas como “Você não acha que o muro ficaria melhor com alguns portões?” e “Tudo bem, mas como são as coisas do lado de lá?” O vizir chegara à conclusão de que, para o bem do próprio imperador, era melhor que ele fosse cruelmente envenenado e enterrado com cal.
Pituco pousou no chão coberto de cascalhos e pedras, do lado de fora do palácio de muitos cômodos, rearranjando de forma violenta a harmonia do universo[8]. Mortimer saltou e ajudou Ysabell a descer.
— Só não me atrapalhe, está bem? — pediu ele. — E não pergunte nada.
Subiu alguns degraus laqueados e percorreu os cômodos silenciosos, às vezes detendo— Se para se orientar pela ampulheta. Por fim, avançou por um corredor e espiou através de uma treliça floreada a longa e baixa sala onde a corte agora jantava.
O jovem imperador Solar estava sentado de pernas cruzadas à cabeceira da esteira, com a capa de penas e peles que parecia brotar dele. O resto da corte se encontrava sentada em torno da esteira — seguindo uma rígida e complicada ordem de precedência —, mas era impossível não identificar o vizir, olhando desconfiado sua tigela de “esmago” e alga marinha cozida. Ninguém parecia prestes a morrer.
Mortimer seguiu o corredor, dobrou a quina e quase deu com vários membros da Guarda Divina, amontoados em torno de um buraco no papel de parede, passando um cigarro de mão em mão.
Voltou para a treliça e escutou a seguinte conversa:
— Sou o mais infeliz dos mortais, ó Presença Imanente, por achar isso no meu “esmago”, que do contrário estaria satisfatório — disse o vizir, estendendo os pauzinhos de comer.
A corte esticou o pescoço para ver. Mortimer também. E não pôde deixar de concordar com o homem: o negócio parecia uma massa disforme verde-azulada com tubos borrachentos pendurados.
— O cozinheiro será punido, Nobre Excelência da Erudição — garantiu o imperador. — Quem ficou com as costelas?
— Não, ó Perspicaz Pai do Povo, eu estava antes me referindo ao fato de que isso, acredito eu, são a bexiga e o baço da enguia de águas profundas, supostamente a mais deliciosa das guloseimas, a ponto de só poder ser ingerida pelos entes queridos dos próprios deuses, e não incluo meu reles ser a tal grupo.
8
O Jardim de Pedras da Simplicidade e da Paz Universal, criado às ordens do velho imperador Um Espelho Solar[12], usava o sistema de sombras e posições para simbolizar a unidade básica da alma e da matéria e a harmonia de todas as coisas. Dizia-se que os segredos da realidade se escondiam na ordem exata de suas pedras.