— Que tipo de bibliotecário teria você como assistente? — perguntou, irritado.
— Oook.
Uma espécie de luva de couro quente tentou segurar sua mão.
— Um gorila! Na minha universidade!
— Orangotango, senhor. Era mago mas foi atingido por um feitiço. Agora não quer ser transformado de volta e é o único que sabe onde ficam todos os livros — esclareceu Rincewind, às pressas. — Eu cuido das bananas dele — acrescentou, por achar que se fazia premente alguma explicação adicional.
Albert olhou para ele.
— Cale a boca.
— Calando a boca, agora mesmo, senhor.
— E me diga onde está o Morte.
— Morte, senhor? — alarmou-se Rincewind, recuando em direção à parede.
— Alto, esquelético, olhos azuis, anda como quem está sempre à caça, FALA ASSIM... o Morte. Não o viu por aí?
Rincewind engoliu em seco.
— Não, senhor.
— Bem, estou atrás dele. Esse absurdo precisa parar. Vou dar um basta nisso agora mesmo. Quero os oito magos mais antigos reunidos aqui em meia hora, com o equipamento necessário para realizar o Rito de AshkEnte, entendido? Não que ver vocês me dê alguma segurança. Bando de maricas... E pare de segurar minha mão!
— Oook.
— Agora vou ao bar — avisou Albert. — Será que ainda tem algum lugar decente que venda cerveja?
— Tem a Tambor — informou Rincewind.
— A Tambor Quebrado? Na Rua Filigrana? Ainda existe?
— Bem, às vezes mudam o nome e reformam, mas o lugar se encontra, ha... no mesmo lugar há anos. Imagino que o senhor esteja com sede — comentou Rincewind, com ar forçado de camaradagem.
— Por quê? — perguntou Albert, rispidamente.
— Por nada — tratou de responder Rincewind.
— Então vou à Tambor. Em meia hora, entendido? E se, quando eu voltar, não estiverem esperando por mim, ora, é melhor estarem!
Retirou-se da sala em meio a uma nuvem de pó de mármore. Rincewind observou-o sair. O bibliotecário segurou sua mão.
— Sabe o que é pior? — perguntou Rincewind.
— Oook?
— Nem me lembro de ter passado debaixo de escada.
Mais ou menos por volta da hora em que Albert se encontrava na Tambor Consertado discutindo com o dono sobre uma conta amarelecida que fora cuidadosamente passada de pai para filho, sobrevivendo a um regicidio, três guerras civis, 61 grandes incêndios, 490 assaltos e mais de 15 mil brigas de bar para sustentar o fato de que Alberto Malich ainda devia à gerência três moedas de cobre mais juros, agora eqüivalendo ao conteúdo de grande parte das maiores casas-fortes do Disco (o que mais uma vez prova que o comerciante ankhiano com uma conta não paga tem o tipo de memória que faria qualquer elefante pestanejar)... mais ou menos por volta dessa hora, Pituco deixava um rastro de vapor nos céus do misterioso continente de Klatch.
Bem abaixo, tambores vibravam nas selvas escurecidas e perfumadas, e colunas de névoa subiam de rios remotos, onde feras inomináveis se ocultavam à espera do jantar seguinte.
— Não tem mais de queijo, você vai ter de comer o de presunto — disse Ysabell. — Que claridade é aquela?
— São as Represas de Luz — informou Mort. — Estamos perto. Tirou a ampulheta do bolso e conferiu o nível da areia:
— Mas não perto o bastante, droga!
As Represas de Luz pareciam grandes poças de luz em direção ao Centro, que era exatamente o que eram. Algumas tribos haviam construído muros espelhados nas montanhas do deserto a fim de recolher a luz solar do Disco, que era lenta e ligeiramente pesada. Usavam-na como dinheiro.
Pituco planou sobre os acampamentos nômades e os silenciosos brejos do rio Tsort. Adiante, formas familiares começaram a se revelar.
— As pirâmides de Tsort ao luar! — exclamou Ysabell. — Que romântico!
— Agamassadas com o sangue de milhares de escravos — Observou Mort.
— Por favor, pare.
— Sinto muito, mas o lado prático da questão é que...
— Tudo bem, tudo bem, já entendi — irritou-se Ysabell.
— É trabalho demais só para enterrar rei morto — considerou Mort, ao circularem sobre uma das pirâmides mais baixas. — E enchem o lugar de conservantes, sabia? Para que o sujeito viva no mundo do além.
— Funciona?
— Aparentemente, não.
Mort se inclinou sobre o pescoço de Pituco.
— Tem tochas mais para lá — avisou. — Segure firme.
Uma procissão se afastava da rua das pirâmides, liderada por uma gigantesca estátua de Ofler, o Deus Crocodilo, carregada por uma centena de escravos suados. Totalmente despercebido, Pituco galopou sobre o cortejo e pousou no chão de terra batida à entrada da pirâmide.
— Armazenaram outro rei — disse Mort.
Ele novamente examinou a ampulheta à luz do luar. Parecia bem tosca, não era o tipo em geral associado à realeza.
— Não pode ser ele — advertiu Ysabell. — Só armazenam o rei quando já está morto, não é?
— Espero que sim, porque li que, antes de deixarem o corpo na conserva, arrancam...
— Não quero ouvir...
— ... todas as partes moles — concluiu Mort. — É melhor que a conservação não funcione. Imagine ter de viver sem o...
— Então você não veio pegar o rei — cortou Ysabell. — Quem será?
Mortimer se voltou para a entrada escura. Só seria fechada no alvorecer, para que a alma do rei morto pudesse sair. A pirâmide parecia profunda e agourenta, sugerindo propósitos consideravelmente mais terríveis do que, digamos, afiar uma faca.
— Vamos descobrir — disse.
— Olhem! Ele está voltando!
Os oito magos mais antigos da universidade se puseram em fila, tentaram desembaraçar as barbas e fizeram o vão esforço de parecer apresentáveis. Não foi fácil. Eles haviam sido arrancados de seus gabinetes, ou da degustação de uma aguardente em frente à lareira, ou da calma reflexão numa poltrona confortável, e todos estavam extremamente apreensivos e um tanto perplexos. Não conseguiam parar de olhar o pedestal vazio.
Apenas uma criatura poderia ter reproduzido a expressão de seus rostos, e seria o pombo que ouvisse dizer não só que lorde Nelson havia descido de sua coluna mas que também fora visto comprando arma e caixa de cartuchos.
— Ele já está no corredor! — gritou Rincewind, e se escondeu atrás de uma pilastra.
Os magos miraram as grandes portas duplas como se elas fossem explodir, o que mostra que eram adivinhos, porque de fato explodiram. Choveram lascas de madeira, e um pequeno vulto magricela emergiu contra a luz. Segurava um bastão fumegante numa das mãos. Na outra, trazia um sapo amarelo.
— Rincewind! — berrou Albert.
— Senhor!
— Dê sumiço nisso aqui.
O sapo subiu na mão de Rincewind e lhe dirigiu um olhar apologético.
— É a última vez que esse maldito dono de bar bate boca com um mago — disse Albert, com satisfação e aprumo. — Saio de cena por algumas centenas de anos e de repente as pessoas da cidade acham que podem responder aos magos.
Um dos magos seniores murmurou alguma coisa.
— O que foi? Fale alto!
— Como tesoureiro da universidade, devo dizer que sempre incentivamos a política da boa vizinhança com a comunidade — sussurrou o mago, tentando evitar o olhar penetrante de Albert.
Em sua consciência, pesavam um penico virado e três pichações indecentes a serem consideradas. Albert abriu a boca.
— Por quê? — perguntou.
— Bem, hã, por um sentimento de obrigação cívica, achamos que é de vital importância dar exempl... aaaiiii.